terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Chuva na Madrugada


Praticamente desconhecida em Portugal, logo pouco lida, a obra de Paustovski é uma súmula de um certo realismo soviético com a poesia inerente a um homem profundamente ligado à natureza. Podemos dizer que a natureza é uma personagem constante na sua obra, a qual assume o papel de força decisiva na vida das outras personagens. O encanto dos rios e das árvores, a ligação que as pessoas têm às árvores da sua infância é suficiente para que abandonem tudo para se poderem dedicar à preservação de florestas imensas. Esta relação inquebrantável é visível no conto "O Barco Corroído", onde o velho Piotr deixa o comboio para cuidar das árvores que cuidara durante a sua infância.

Por outro lado, a memória surge como um elemento que aproxima as pessoas, uma forma de tempo comum vivido pelas personagens. No entanto, esta memória é por vezes exposta envolta numa neblina que confunde os pensamentos, a certeza de aquele conhecer tal mulher, mas não saber exactamente de quem se trata. Esta lembrança difusa pode representar uma provável inverossimilhança, ou seja, num país tão imenso como a Rússia, como podem duas pessoas ter a sensação de já se terem encontrado? É este fascínio pertubador que fortalece a obra de Paustovski, um homem e uma mulher que percorrem um campo escuro e lamacento para que ele possa tomar o barco e partir para sempre. O homem toca na mão da mulher, mas não consegue dizer que já a viu, ou pelo menos que dela tem uma vaga recordação. No fim, os dois ficam na escuridão, encharcados e sem um tempo que seja dos dois.

Outro elemento muito importante neste pequeno livro de contos é o peso da família, nalgus casos visto como uma entrega absoluta e incondicional, noutros como uma responsabilidade absurda que leva a que uma pessoa se anule em proveito da outra. "O Telegrama" é dos textos mais perfeitos desta colectânea por descrever de forma tão clara a problemática da dependência de familiares. Sem dúvida alguma a disparidade de dois mundos - o meio artístico e uma velha mãe nos confins da Rússia - é uma questão delicada, porém, como conciliar as aspirações de uma jovem artista e a sua ligação com a mãe? Konstantin Paustovski não pretendeu colocar em conflito a arte com a família, senão a cidade com o campo, onde na primeira é o ritmo frenético que comanda as nossas vidas.

Finalmente, destaco o penúltimo conto deste livro, "Os Rios Inundados", um texto de uma beleza única que tem como personagem principal Mikhail Lermontóv, poeta, soldado, nobre de valores, morto em duelo.
"Chuva na Madrugada"
Editorial Inova, 1973

sábado, 28 de novembro de 2009

Contos Escolhidos


Conhecido essencialmente como dramaturgo, Luigi Pirandello foi um notável contista. Os seus contos possuem características que os tornam especiais, nomeadamente a riqueza das personagens, onde o que mais se destaca é uma certa solidariedade pelos elementos mais baixos do povo. Pirandello, nestes contos, aborda aturadamente a miséria italiana (ou humana, diríamos de forma mais lata), focando-se na zona sul, a tipicamente pobre. As personagens demonstram uma força de adaptação incrível às circunstâncias, muitas vezes ferozes e mortais, perpassando um humor negro que servirá precisamente para desdramatizar o acto de escrever, mas não aquilo que está escrito, ou seja, Luigi Pirandello opta por narrar algumas histórias dos miseráveis da vida, com humor, mas não colocando este na vida das personagens, senão no próprio absurdo da vida daquelas.
Uma das características que mais me fascina nos contos de Pirandello é o ritmo certo que utiliza nas suas histórias, nunca demasiado curtas, nunca demasiado longas, aquilo que acontece é marcado pela pontualidade dos grandes narradores. Os contos mais curtos como Lucilla, atestam a questão do ritmo e do humor que desliza suavemente pela crueldade. Em menos de seis páginas, Pirandello conta a história de uma rapariga que foge do convento para a casa do seu amado, porém, quando chega a casa dele, é confrontada com um grupo de homens (que a violará?) e o seu "namorado" aponta candidamente para um outro jovem e dirá: "Olha! Aqui tens o teu noivo." A moral deste conto? Provavelmente nenhuma, o essencial é desconstruir o dramatismo para torná-lo ainda mais pesado. Neste sentido, Pirandello é um narrador ausente, se ouvimos a sua voz é porque foi da sua lavra que estes contos saíram, ao mesmo tempo a sua voz cala-se porque só ouvimos aquilo que as personagens dizem.
A religião, a morte, a miséria, a traição (a figura do cornudo é recorrente) são os temas mais queridos de Pirandello, uma vez que são uma espécie de fio condutor que torna coesos todos os contos deste volume. Para a questão da miséria, o conto que melhor ilustra é "A Caderneta Vermelha", onde mulheres vão buscar órfãos em troca da tal caderneta que lhes dará uma pequena pensão. Depois, os malteses comprarão as cadernetas por metade do preço em troca de enxovais, assim as raparigas pobres poderão casar. "A verdade" explora a defesa em tribunal de um homem que matou a mulher por esta ser adúltera, de facto, a defesa arranca risos dos jurados e testemunhas, mas também do juiz. "O Tabernáculo" ilustra com ironia a questão da fé, um católico a quem é encomendada a construção de um tabernáculo, acaba por substituir Cristo e optar como morada o monumento de fé que havia construído.
A introdução nos contos de Pirandello servem como isco: aparentemente falam de uma coisa que distrai o leitor, para em seguida o parágrafo seguinte já falar de outra história (tudo é aparência).
"Contos Escolhidos"
Editorial Verbo, 1972

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Três Contos


Escrever sobre Máximo Gorki é escrever sobre a sociedade russa; ler Máximo Gorki é saber a cultura de um povo magnífico. Nestes "Três Contos" deparamo-nos com temas muito particulares da literatura russa: a condição miserável dos operários - é um tema transversal à literatura russa e não só à literatura soviética -, onde a dureza do quotidiano marca profundamente o carácter das pessoas; as relações familiares, nomeadamente o respeito pelos mais velhos, o sacrifício praticado por estes para que aqueles não sintam a fome de todos os dias; o onírico eslavo que tem como morada as tundras e as planícies vastas do frio.

Máximo Gorki é um dos expoentes maiores da literatura comprometida, durante muito tempo o escritor "oficial" da revolução, o escritor que imortalizou Lénine e que com este trocou uma correspondência sincera e riquíssima. Naturalmente que a sua obra de maior fama é "A Mãe", romance ideológico, mas também de amor e dedicação, não mãe-filho e vice-versa, como filho-humanidade.

Embora seja um autor imediatamente conotado com a revolução e com a luta dos oprimidos, Máximo Gorki acaba por ter uma obra diversa e multifacetada, através de páginas de magnífica beleza e poesia, páginas que servem perfeitamente para caracterizar um povo tão heterogéneo. Nesta pequena obra, o autor russo escreve de uma forma avassaladora sobre as agruras de um avô e de um neto, miseráveis na condição de seres humanos, pedintes de cidade em cidade, esfomeados e desesperados num país frio e infinito. O avô tudo fará para que o neto não deixe de comer e que jamais sinta no estômago a fome que ele já testemunhou. Para que a miséria seja mitigada, por vezes, é necessário recorrer a expedientes menos próprios, consequência imediata da deplorabilidade da condição humana. É precisamente através de um expediente nada honroso que a tragédia afasta os dois, o conflito é dramático, o final inesperado. O amor jamais os separou e aquilo que está reservado a ambos é prova disso.

Por outro lado, temos uma fada que quer conhecer os homens e o mundo destes, pese embora os avisos da mãe ainda soem nos seus ouvidos. A perfídia e maldade derrotam a ingenuidade e a pureza magistral do coração da fada, esta sofre porque anseia conhecer o mundo e a vida para lá da floresta cerrada. Neste caso, temos um pastor que alicia a fada com canções cantadas por uma maravilhosa voz, mas no fundo, não passa de beleza dissimulada para capturar a verdadeira, aquela que a só a pureza pode ter.

Finalmente, o último conto deste pequeno livro, aborda a vida nas salinas, o trabalho e as relações tensas entre quem está dependente daquele trabalho para sobreviver e os que acabam de chegar. A relação de ameaça entre quem está empregado e quem procura desesperadamente agarrar-se a um trabalho desumano, um tema que podemos considerar actual e que seria precisamente algo que Gorki criticaria nos nossos dias. O espírito que perpassa em todo este conto é uma marca enraízada na cultura russa: violenta e sarcástica, mas também humana e solidária.
"Três Contos"
Editorial Inova, 1972

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A História me Absolverá


Há livros que falam da sinceridade e outros preferem falar com sinceridade. No caso do mítico livro de Fidel Castro "A História me Absolverá", pertence, sem dúvida alguma, ao segundo grupo mencionado.

Nem todos as obras que partem de um eu reflectem exactamente a pessoa mais isolada da gramática, alguns são efabulados, outros serão exagerados, outros omissos, alguns negativos, etc. Perante as páginas deste testemunho histórico somos confrontados com uma honestidade que constrange o leitor porque é apanhado de surpresa, raras vezes encontramos sinceridade numa obra que tem como figura central uma pessoa de poder ou de proto-poder, na medida em que é preferível adornar as afirmações pensando já no futuro cargo.

Como já tinha visto no "Biografia a Duas Vozes" de Ignacio Ramognet (ed. Campo das Letras) e no filme "El Comandante" de Oliver Stone, Fidel Castro jamais recusa responder às perguntas feitas, assim como não nega o bem e o mal praticados. Acima de tudo, Fidel Castro assume os erros que cometeu, assume a responsabilidade de decisões polémicas, partilha a glória e as conquistas do povo cubano.

Neste livro, Fidel Castro defende-se perante os tribunais de Fulgêncio Batista (por isso aconselhável a pessoas do Direito e da Lei), após ter sido capturado em acções de guerrilha e tentativas de depor o ditador Fulgêncio. Em certos momentos, a defesa de Fidel é inexorável e sublime, abraça o povo e os ideiais socialistas, renega a influência norte-americana e entrelinhas, deixa a sugestão da revolução vitoriosa de 1959. Este livro tornou-se o manifesto da reistência, fruto das denúncias e ataques realizados por Fidel à venalidade do regime de Fulgêncio Batista. Ao longo da auto-defesa, Castro enumera ilegalidades, corrupções, violações, abusos de poder. Revela números e casos de corrupção praticados pelo ditador e pelos seus esbirros.

Quer se goste ou se odeie Fidel Castro, uma certeza podemos ter: a sua figura carismática é incontornável e com certeza ocupará para sempre um lugar na História mundial.


"A História me Absolverá"

Editorial Presença, 1970

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O Último dia de um Condenado


Este romance de natureza epistolográfica retrata a angústia de um condenado à morte, apodrecendo no chamado corredor da morte. A personagem principal (suposto autor das cartas que mais viriam parar às mãos de Victor Hugo) é um homicida condenado à pena capital que vai descrevendo o seu quotidiano e a forma vã como ainda aguarda um indulto.
O condenado vai sendo transferido de celas e, à medida que a execução se aproxima, estas vão-se tornando cada vez mais desconfortáveis e pequenas. O terror mental começa a surtir efeito porque ele já não domina a razão e entra em pânico com o aproximar do dia. Os seus pensamentos são dirigidos à sua pequena filha, sente misericórdia por ela, saudades, mas teme igualmente que no futuro tenha vergonha por ter o nome do pai, um nome de assassino.
A introdução de outras personagens serve para aumentar o conflito, nomeadamente a visita do padre, as conversas com outros prisioneiros, verdadeiros criminosos sem escrúpulos, homens que retiram vidas apenas porque não sabem fazer outra coisa. As visitas de carcereiros ou do chefe da prisão estimulam o pânico, na medida em que a vida não era valorizada e o condenado que escreve será o próximo a perder a cabeça na praça da vila, rodeado por populares que levam os filhos em passeio, afinal será um dia de festa.
Antes de morrer ouvirá uma jovem rapariga cantar uma música sinistra, ao longo de vários dias, uma bela voz com palavras tão amargas. Tentará igualmente, através de um estratagema engenhoso, ludibriar um carcereiro, levando-o a aceitar trocar de roupas. Por momentos quase conseguiu.
Victor Hugo escreveu esta obra para que pudesse ser um manifesto contra a pena de morte, uma voz praticamente isolada na Europa, tendo em conta que o Humanismo não seria prática corrente.

"O Último Dia de um Condenado"
Prefácio, 2002

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Audiência, Vernissage e Petição


As três peças de teatro reunidas neste livro abalam-me por características importantíssimas no teatro: a tensão, a confusão psicológica que conduz ao absurdo, a manipulação mental com o propósito de conquista.
O ambiente etílico da primeira peça introduz-nos imediatamente no centro do conflito, um escritório que tresanda a cerveja e o cervejeiro que não pára de beber. Vanek, o empregado que vai falar com o responsável, é constantemente convidado a beber, afinal de contas está numa fábrica de cerveja. O empregado prefere não beber e por isso a lucidez mantém-se no seu espírito.
Uma das técnicas utilizadas por Václav Havel é a repetição, as personagens são levadas a repetir frases, por vezes até à exaustão. Será para enfatizar uma ideia? Penso que será para o espectador se centrar no perfil psicológico da personagem, quer para compreender a sua fraqueza ou objectivos obscuros, quer absurdizar a acção. De facto, o dramaturgo checo domina o ritmo das palavras e o seu uso, as repetições surgem nos momentos exactos e às tantas o próprio leitor dá por si a cantar interiormente as falas das personagens.
Para atingir a intensidade que explode nos palcos, Václav Havel opta por frases curtas e linguagem vulgar, sem que isso destrua a beleza dos seus textos, para intensificar a angústia de determinada personagem, ou por outro lado, para destacar o absurdo de tal figura. A literatura de leste desconstrói realidades adquiridas e caricaturiza aquilo que é o poder instalado, atingindo por vezes instantes de sátira à grotesca existência dos homens de estado, mas também daqueles que os temem. Exemplo disso é a peça "Petição": dois intelectuais discutem sobre companheiros presos e perseguidos, discutem a possibilidade da criação de uma petição e posterior publicação no ocidente. Na verdade, um procura que seja o outro a assinar, enquanto que este já tem o documento preparado. Encontramos aqui um jogo extraordinário de pressões e medos, onde ninguém quer entregar o coração nem perdê-lo por confiar em demasia.
Em quem confiar nas peças de Václav Havel?


"Audiência, Vernissage e Petição"
Relógio D'Água Editores, 1990

A Traição do Padre Martinho


Bernardo Santareno encarna na perfeição o espírito do autor comprometido com o seu tempo, com a sociedade que o representava. Sem dúvida alguma um dos dramaturgos mais importantes da Literatura Portuguesa do século XX, quer pela pertinência das suas peças como pela denúncia que as suas personagens espalhavam.
"A Traição do Padre Martinho" coloca em cena um conflito de classes entre o povo e o poder económico, representado pelo lavrador e o engenheiro, proprietário da única fábrica existente no Cortiçal. O padre Martinho, cristão convicto, procura ajudar os paroquianos naquilo que puder, sobretudo nas questões profissionais. Essencialmente crê como sua obrigação impedir que as pessoas da aldeia sejam exploradas e por isso ajuda-as a lutar pelos seus direitos, facto que conduz a algumas greves e paralisações que muito desagrada o engenheiro.
Se por um lado temos um padre que luta pelo povo, por outro temos um vigário que luta pelos poderosos, uma vez que são estes que reabilitam as igrejas, mesmo que muitas vezes não as frequentem. Na verdade, o padre Martinho assume-se um quase marxista-cristão, categoria que não é tão absurda, se tomarmos em linha de conta o cruzamento de ideias das duas correntes e a forma como ambas podem coexistir.
No entanto, o povo está sempre sozinho e o poder sempre acompanhado por outro poder. Quando a situação se torna demasiado incómoda, o vigário, secundado pelo engenheiro e pelo lavrador, recorre ao bispo para transferir o padre Martinho para muito longe. A situação torna-se tensa, o poder não recua, as ordens estão dadas. O povo não abandona o padre e este fica refém na casa onde vivia, a população não permite que o padre Martinho seja expulso e às tantas, o conflito passa a ser entre povo e poder, sendo que o próprio padre já não é ouvido pelas pessoas.
A tragédia está iminente e de facto acaba por acontecer no desvario do poder em enviar para a aldeia as forças da ordem para suster o povo.
Bernardo Santareno recorre a algumas técnicas eficazes, nomeadamente o uso de personagens que são porta-estandartes neutros, como também a multiplicação física do padre Martinho, quando o conflito interior atinge o ponto máximo. Outro aspecto importante é a presença do narrador, figura imparcial que torna mais verdadeira a acção.

"A Traição do Padre Martinho"
Galeria Panorama, S/D

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Romance Teatral


Um dos atributos habitualmente reconhecidos na literatura russa é a análise psicológica e uma certa ambiência psíquica que afasta os russos dos demais europeus. Na obra "Romance Teatral", de Mikhail Bulgakov, a dimensão psicológica é intensa pela incerteza e pela teia labiríntica em torno de Serguei Leontievich, personagem principal candidata a dramaturgo.
De certa forma, podemos ver neste livro uma matriz kafkiana, uma vez que Serguei é conduzido por dezenas de escritórios e outros tantos responsáveis ou influentes pessoas do teatro. Na verdade, o caminho para ver uma peça sua representada é um calvário agónico, sobretudo depois do processo para alguém ter reconhecido o seu valor ter sido igualmente demorado. Um sem fim de portas abertas/fechadas e entrevistas deixam Serguei numa confusão que praticamente o deixa na prateleira dos desistentes.
O absurdo (mais uma vez a presença curiosa de Kafka) da situação é inverosímil, pois os actores, secretários, encenadores, amigos espectadores, diletantes decadentes do teatro russo, vêem-se no papel de editores, dada a natureza impulsiva para criticar e emendar o texto que apenas ao autor pertenceria. Ainda mais absurdo se torna quando Serguei Leontievich escreve uma peça para actores jovens, aquilo que podemos considerar jovens adultos, e no teatro apresentam-se os actores veteranos, os fundadores do Teatro Central, como os actores ideais para tal peça. Ora, a questão torna-se ainda mais absurda quando estes actores teriam perto de cem anos, sendo que alguns deles teriam trabalhado com actores do princípio do século XIX!
Nesta obra de Mikhail Bulgakov encontro uma certa crítica ao teatro russo e a todos os grupos que influenciam os seus movimentos, mas também a repúdia ao regime estalinista, o qual proibiu Bulgakov de escrever durante algum tempo.

"Romance Teatral"
Parceria António Maria Pereira, 1973

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Fernão de Magalhães, O Homem e o seu Feito


A escolha de livros e a relação que temos com os escritores pode ser uma forma de circum-navegar o mundo, atravessamos o tempo e toda a geografia é simbólica quando temos na mão a cultura japonesa ou os costumes eslavos. Circum-Navegar.
O livro "Magalhães - O Homem e o seu Feito" concentram duas personagens cativantes da História Universal. O autor, Stefan Zweig, foi um humanista à maneira de Erasmo de Roterdão ou Damião de Góis. Erasmo foi perseguido pelo poder e por uma sociedade obscura; Damião de Góis foi acossado (e talvez morto) pela Inquisição; Stefan Zweig foi feito personna non grata pelos nazis, a sua ascendência judaica era proibitiva para a nova ordem mundial. A outra grande personalidade desta obra é Fernão de Magalhães, o qual sempre acreditou numa certa esfericidade da Terra, facto que o poderia ter levado à fogueira.
As obras deste escritor austríaco estão marcadas pelo profundo humanismo com que insufla as suas narrações, mas também pela paixão da investigação. Se é possível notar uma certa parcialidade motivada pela admiração, não é menos verdade que Stefan Zweig não sacrifica a verdade ao seu gosto pessoal. Narra com paixão, mas com dados históricos.
Em "Magalhães" encontramos um homem obstinado em circum-navegar o planeta, um homem intransigente que não se verga perante afrontas e tentativas de traição, ao mesmo tempo, não se coloca acima do feito, sabendo que as descobertas da sua missão revolucionariam o mundo - ainda por cima controlado pelo Papa -, não deixou de ser um homem discreto e comedido.
Por vezes o estilo de Zweig pode parecer pouco histórico, uma vez que tende a poetizar os factos e o seu pensamento é visível em cada linha. Para além de historiador, é igualmente um homem preocupado com a Humanidade, por isso vê a História como um campo que pode aludir às "pequenas personagens" dos grandes feitos. Não é o caso, claro está, Fernão de Magalhães, ao serviço da coroa espanhola, roubou ao planeta um dos seus mistérios e descobriu o estreito que permitiria a passagem do Atlântico para o Pacífico.
Curiosamente, este estreito pouco foi usado depois da descoberta de Magalhães, mãos pouco habilidosas conduziam os navios contra os rochedos e a tripulação à perdição. Mas o mundo já era outro e nenhuma mesquinhez conseguiu roubar a glória eterna ao navegador português.


"Fernão de Magalhães - O Homem e o Seu Feito"
Assírio & Alvim, 2007

O Presidente


Um texto curioso logo pelo título: "O Presidente". Na verdade, ao longo do texto, Thomas Bernhard coloca no centro da acção e como grande impulsionadora das vidas alheias, a mulher do presidente. É esta personagem que disserta sobre os "hipotéticos" problemas da democracia ditatorial conduzida pelo seu marido.
A mulher do presidente é uma personagem patética e ao mesmo tempo profundamente melancólica, fala constantemente para uma alcofa vazia - o cão fora morto num atentado -, nos seus monólogos as outras personagens são convidadas a falar, mas sem espaço para o fazerem, uma vez que a presidenta fala em torrentes magníficas de disparates, resignam-se a um espaço interior que as desumaniza lentamente. É perceptível uma cisão entre classes sociais, a mulher do presidente e a criada (Senhora Feliz) representam os pólos opostos: a primeira decide o que a criada veste, o que diz, decide ainda sobre a forma como a criada deve viver; por outro lado, a criada limita-se a ser gente porque ainda veste as roupas que a sua patroa já não usa. É gente em último grau.
"O Presidente" é uma peça em cinco actos, dois dos quais passados em Portugal, aqueles em que o presidente se diverte a manipular a sua amante, uma actriz de segunda que apenas vive na sombra da sombra do estadista. Portugal acaba por ser retratado como um último paraíso europeu, a grande varanda para o Atlântico, os vícios e os prazeres no Casino do Estoril.
Thomas Bernhard não escolheu Portugal à toa - como podia? -, pois conheceu-o muito bem, em dois períodos distintos: revolução e pós-revolução. Assim como na sua peça o ditador cheira a ameaça de uma revolução, em Portugal uma revolução acabara de acontecer.
Não faltam adjectivos para caracterizar o espírito acintoso deste autor austríaco (nascido na Holanda), assim como a perturbação que percorre toda a sua obra. Uma peça de ritmo difícil pela pontuação, mas soberba pela descrição de uma ditadura em decadência.


"O Presidente"
Livros de Areia, 2008

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Autobiografia Prematura


Uma autobiografia será sempre prematura, assim como as memórias, se for escrita muito antes da morte. Será inquestionavelmente um conjunto de revelações incompleto, tendo em conta que a história mais interessante poderá ser a última.
Mas no caso de Ievguéni Ievtuchenko (1933-), a sua Autobiografia Prematura faz algum sentido se considerarmos que foi escrita num período especial da União Soviética. Embora não tenha conseguido descobrir o ano exacto em que foi escrita a obra (presumo que entre 61-62), foi seguramente no período de destalinização (Estaline tinha morrido em 1953) e no momento de maior abertura, uma vez que Kruschev teve como objectivo denunciar ao máximo as atrocidades do seu predecessor. Assim, Ievtuchenko, aproveita esta porta aberta para escrever livremente, não pensando num líder que censurasse a sua obra, nem ao mesmo tempo, temer um exílio na Sibéria (sua terra natal). Por outro lado, não sabia que líder se seguiria, portanto aproveitou e fê-lo bem.
Em "Autobiografia Prematura" o escritor soviético expõe a sua vida sem qualquer tipo de pretensiosismo, nomeadamente no que diz respeito à sua vida literária. Fala com franqueza quando assume as recusas dos jornais e editoras, nem sempre por falta de talento, mas porque razões políticas impediam tal poema de ser publicado. E um dia consegue publicar poemas em jornais desportivos – o que lhe confere desde logo inimizades vindas de colegas de profissão -, poemas de juventude, claro, mas marcados por uma certa irreverência, uma vez que não referiam o nome de Estaline. Na verdade, alguns deles tiveram de ser “emendados” para puderem ser publicados. E no fim, lá aparecia o nome do ditador soviético. Curiosamente, o livro preferido de Ievtuchenko é Martin Eden, de Jack London, onde a personagem principal (Martin Eden) é um escritor que procura editar e não consegue. A sua luta épica dura anos, assim como a de Ievguéni Ievtuchenko.
Mas Ievtuchenko não fala só de literatura, aborda ainda aspectos sociais e políticos do seu país, explica alguns dos trabalhos que foi tendo e sobretudo, da sua outra paixão: o futebol. Tal como Albert Camus, Ievtuchenko podia ter sido guarda-redes (parece que seria dos bons), porém, um dia chega aos treinos completamente bêbedo e o treinador expulsa-o. Estava terminada a sua carreira no futebol, apenas porque agora já publicava poemas em jornais e isso “obrigava-o” a ser boémio.Um dos episódios mais marcantes deste livro é a descrição do funeral de Estaline. Como é natural, milhares de pessoas amontoaram-se para ver o féretro onde seguia o morto, alguns por simpatia outros para terem a certeza de que realmente Estaline tinha morrido. No entanto, durante o cortejo, várias foram as pessoas que morreram, sufocadas e espezinhadas, empurradas contra paredes e postes. Ievtuchenko ajudou a multidão e conseguiu atenuar a tragédia, mas não conseguiu ver Estaline. Ou conseguiu? “- Viste o Estaline? – Perguntou-me a minha mãe. / - Vi – Respondi num tom que não encorajava a continuação da conversa, enquanto erguia o meu copo e tocava no do rapaz. / Afinal , não chegara a mentir à minha mãe. Estaline era, realmente, aquele desastroso espectáculo que presenciara.” (p.130).


"Autobiografia Prematura"
Publicações Dom Quixote, 1966

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Pedro e João


Em “Pedro e João” Guy de Maupassant explora a relação tensa entre dois irmãos, sobretudo depois de um deles (João) receber de herança 20 000 Francos, provenientes da morte de um amigo dos pais. Maupassant desenvolve esta problemática de uma forma muito equilibrada, nomeadamente no ritmo de revelações e agravamento da relação, como na própria estrutura do romance, onde o tempo e espaço são desenvolvidos de maneira muito calma, pese embora o destino que paira sobre cada um.
Guy de Maupassant, discípulo oficial de Gustave Flaubert, oscila entre o Naturalismo e o Realismo, quer criticando socialmente a Paris oitocentista, como aproximando-se de análises psicológicas das personagens. A forma de o fazer é muito diversa da desenvolvida por Dostoiévski, uma vez que este era mais denso e violento nas suas construções, claro está que o facto de um ser francês e outro russo explica as diferenças entre os dois. No entanto, Maupassant opta por um caminho mais limpo, por cargas psicológicas menos exaustivas, colocando o indivíduo na sociedade e assim criticando os vícios de todos através de uma só personagem.
Neste romance de 1888, o autor coloca dois irmãos em confronto, como dois blocos distintos que rivalizam por um lugar de destaque entre a burguesia pavoneante. Pedro (médico) perde quase sempre para João (advogado), quer nas preferências dos pais, como de uma viúva que paira em busca de um futuro marido. Por isso Pedro comunga das cervejas e dos antros sebosos dos marginais que circulam pelo cais; recebe com encanto o licor de cereja que Marowsko, emigrante polaco, lhe oferece. Com todos se identifica, à excepção daqueles que lhe são próximos: despreza o irmão pela popularidade; odeia o pai pela sua capacidade inata de ser estúpido; passará a sentir-se enojado com a presença da mãe por… É necessário ler o livro para saber esta razão!
É um romance de vícios, de paixões desmedidas e dicotómicas, um romance de terra e de mar. Um romance essencial da literatura francesa do século XIX.
Para além do romance, Guy de Maupassant oferece ao leitor um ensaio curioso sobre a obra, sobre a profissão de crítico literário e suas falhas nos critérios, na forma acéfala como aqueles analisam as obras. Ao mesmo tempo, Maupassant traça de uma forma muito simples a sua poética e isso podemos encontrar nas páginas que se seguem, ou seja, neste romance e em outras obras do autor.

Pedro e João”
Editora Arcádia, 1960

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A Estalagem das Duas Bruxas

Infelizmente não se trata de uma aventura marítima. Felizmente "A Estalagem das Duas Bruxas" é uma aventura fantástica, das brumas costeiras e dos mitos que torturam a fragilidade humana. De certa forma, ainda que a semelhança seja remota, este conto de Joseph Conrad é um exercício proto-épico, na medida em que dois heróis (dois dos melhores marinheiros da corveta britânica), Cuba Tom e Edgar Burne, são obrigados a viajar por uma terra perigosa e potencialmente dúbia, Espanha.
Os dois marinheiros têm como missão encontrar o grupo miliciano do Gonzalez, cuja aversão aos franceses o aproxima dos ingleses e vice-versa. Aquilo que atrai os marinheiros a terra não são as vozes melífluas das sereias, senão a tal missão secreta. No entanto, os dados estão lançados e os homens separam-se, Edgar Burne segue sozinho em busca de Gonzalez e Cuba Tom regressa à corveta. A Fortuna exige que Cuba Tom caia nas mãos negras do Destino e que Edgar siga o mesmo caminho. De facto, Cuba morre e envia do mundo dos mortos um aviso ao companheiro "Abra bem os olhos!".
Edgar Burne, oficial e bom homem, começa a investigar o desaparecimento do companheiro, facto que o levará a afastar-se do grupo do Gonzalez. Com um domínio muito fraco de Espanhol, Edgar cruzar-se-á com locais hostis, antipáticos até à medula, totalmente avessos a forasteiros. Ainda assim, o nosso herói consegue obter informações sobre Cuba Tom e parte decidido para a estalagem das duas bruxas. A revelação (oráculo) foi feita por um homem embuçado, envolto num manto de suspeita e ironia. Os intentos deste homem são obscuros, mas a informação é válida.
Finalmemente o último ponto épico deste conto: tal como Perseu ou Ulisses, Edgar Burne visita as duas bruxas, ainda na incerteza da natureza diabólica das duas figuras. Será que podemos afirmar que se trata de três bruxas, tal como Perseu perante as três bruxas estigeanas? Na companhia das duas mulheres vivia uma jovem mulher que acaba por enfeitiçar Edgar Burne, uma beleza inaudita deixa o oficial rendido e de certa forma mais descansado. Beleza e maldade, tentação e perdição, características que estão intimimamente ligadas ao Mal.
Joseph Conrad acaba por escrever um conto gótico com traços épicos, pleno de elementos mitológicos e aventureiros. O herói deste conto cai na armadilha e fica preso no quarto onde Cuba Tom fora assassinado. "Abra bem os olhos!" fora o aviso do infeliz. Edgar Burne, drogado com a comida que as velhas lhe ofereceram, resiste até ao fim, não adormece e destrói o poder maligno que se alimentava naquela estalagem.
Sorte ou azar? Destino!


"A Estalagem das Duas Bruxas"
Publicações Europa-América, 2007

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O Tempo e o Quarto


Uma festa que não tem fim porque os convidados voltam atrás. Um homem vem à procura do relógio que julga ter esquecido naquela casa; uma mulher que está na rua e entra em casa porque julga estarem a falar dela; um homem que aparece e revela o nome da mulher que estava na rua. Aos poucos vamos sabendo nomes e histórias das personagens, a forma como todos se cruzam. Aos poucos somos convidados a entrar na obra e na festa, que entretanto já se transformou num desenrolar de memórias, histórias de amor amargas e não correspondidas.
Ao que tudo indica, Julius e Olaf são os anfitriões da festa e em última análise, da própria casa. O primeiro está habituado a falar e a questionar a vida e os outros, enquanto que Olaf é um homem habitado pelo silêncio, o seu e o dos outros, prefere não ouvi-los e foge quando alguém lhe dirige a palavra.
São os leitores-espectadores, os responsáveis por construir um puzzle de emoções e de indícios que constituem as personagens, uma certa confusão abunda naquela casa e num dado passado em que as personagens se cruzaram.
Para além da casa, apenas a rua de que falam, e o resto do cenário é sóbrio e reduzido. O cenário não é importante, mas sim o conflito que se espalha e se insinua com o tempo.
Numa segunda parte da peça ficamos a saber que algo estava invertido inicialmente, as personagens afinal têm outras histórias, a casa não é de Julius e de Olaf, a mulher (Marie Steuber) que estava na rua afinal não é uma forasteira.
O tempo é uma presença muito relevante nesta peça de Botho Srauss, não-só pela ponte criada entre o presente e o passado, como depois entre o passado e o presente (novamente a inversão). A única coisa que parece ser negada é o futuro.


"O Tempo e o Quarto"
Relógio D'Água Editores, 1993

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

O homem ou é tonto ou é mulher


Um homem que tem pedras dentro dos bolsos e que quer trocá-las por uma máquina de pensar. O mesmo homem tem dois livros de um filósofo que pensam por ele, mas o problema está nos pensamentos serem sempre os mesmos, um livro não pode mudar.
O homem ou é tonto ou é mulher acaba por ser um excelente exercício literário, uma espécie de roteiro da vida de um homem que disserta sobre as suas experiências. Os projectos e ambições que ele tem são magníficos, porém, o desejo estraga tudo e o desejo é o sexo. Em última análise, o sexo estraga tudo. Este pequeno livro é uma súmula de humor negro, imagens cruéis narradas com uma dose refinada de ironia que acabamos por sorrir no fim da frase, "Um dia decidi declarar finalmente o meu amor e quando cheguei à porta da rapariga ela estava mesmo a sair para o seu casamento.
É um caso típico de má sorte."
Podemos ler esta obra como uma biografia não-autorizada de alguém que não existe, uma personagem com substância, mas que ainda não existia como existe hoje. O tempo transforma as personagens e se o homem tinha 30 anos no livro, hoje terá mais. As personagens envelhecem como as pessoas, mas este homem encerra em si as características de um excêntrico: pensamentos peculiares, acções dementes, criações.
Este livro foi adaptado para teatro pelos Artistas Unidos. Compreende-se porquê, uma vez que o ritmo dinâmico permite agilizar o actor perante o espectador, quer através dos aforismos acutilantes do homem, quer através das próprias vidas que a personagem experienciou. Embora não tenha indicações cénicas ou de posição do actor (está escrita em prosa), será fácil imaginar a peça dentro do livro: as acções interiores e exteriores sugerem um espaço imaginado por cada um.
A fechar o livro um ponto que fala sobre os artistas, criando de certa forma um ponto de ruptura com os pontos anteriores. A personagem assume-se como artista (o próprio Gonçalo M. Tavares?) e expoe as angústias e os medos, o caminho inevitável para um artista: a solidão.
Uma pequena obra demasiado curiosa para não ser lida, assim como o autor, o mais interessante escritor português da actualidade e sem dúvida alguma, o mais coeso no universo das suas obras.


"O Homem ou é Tonto ou é Mulher"
Campo das Letras, 2002

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O Engenho


Uma grandiosa ode à liberdade, um poema cuspindo contra os ditadores e a opressão, um lamento pela prisões em cada rua.
Nesta obra escrita em prosa e poesia - mas considerado poema pelo autor -, Reinaldo Arenas, um dos intelectuais dissidentes mais conhecidos de Cuba, explora o lado obscuro do regime cubano, através da descrição do "recrutamento" de jovens para o trabalho nas plantações de açúcar. Na verdade, este é um trabalho escravo, onde as horas diárias de produção chegam às 16. Extenuados, os jovens apenas podem aspirar à morte por cansaço ou ao apagamento da mente, deixar de imaginar o futuro, embrutecendo-se entre canas e açúcar que adocicarão os lábios dos senhores e reis do mundo.
Este não é apenas um poema contra a escravatura, acima de tudo, é uma obra sobre a história da escravatura, dos africanos que foram levados para Cuba e aí pereceram sob o peso do chicote e das horas perdidas a carregar pedras. É um poema que aproxima a escravatura actual da antiga, daquela que sustentou os Descobrimentos e tornou as sociedades europeias ainda mais civilizadas, onde os jovens - dissidentes, pequenos criminosos, gays, etc. - eram conduzidos àqueles campos de reeducação. Pretendia-se transformá-los em revolucionários e protectores do regime; acabaram escravos, acabaram mortos, acabaram exilados.
Reinaldo Arenas enfatiza a falta de esperança para os jovens - porque são o futuro do país -, aquele caminho que subitamente é cortado e de repente, apenas um abismo aos seus pés: pátria ou morte. Apenas o mar é imagem de liberdade, tem a imensidão que caracteriza o infinito, é a fronteira para os EUA.
Embora adepto da Revolução (no seu princípio), rapidamente fica desiludido com as consequências: perseguido por ser homossexual, os seus textos são vigiados, a sua liberdade termina numa prisão. Porém, depois da agonia da desesperança e da dor, da humilhação, Reinaldo Arenas consegue embarcar para Miami, onde morre mais tarde num apartamento, assistido pelo seu companheiro.
Mas como o próprio diz em O Engenho, a propósito da liberdade:

procuramos-te ainda
procuramos-te sempre.


"O Engenho"
Antígona - Editores Refractários, 2006

"Antes que Anoiteça"
Edições Asa, 2ª edição, 2001

"Antes que Anoiteça"
Filme sobre a vida de Reinaldo Arenas
Realizado por Julian Schnabel, 2001



sexta-feira, 31 de julho de 2009

Autobiografia


No dia 24 de Novembro de 1859, em Londres, eram vendidos 1250 exemplares d’ A Origem das Espécies. Este dia assinalou o lançamento da obra. O naturalista Charles Darwin finalmente publicava o seu livro que viria a revolucionar a ciência, a religião e, consequentemente, o mundo. Um livro que demorou perto de 20 anos a ser publicado, quer pela melhoria e certeza das afirmações, mas também para ser tornado público num momento mais favorável.

No livro Autobiografia, Darwin fala sobre este assunto, sobre a forma como ele próprio encarou a polémica; aborda igualmente a sua viagem no Beagle, nomeadamente a disputa que teve com o pai, uma vez que o pai desconsiderava a profissão de naturalista. Chegaram a acordo e Robert Darwin permitiria que o filho embarcasse na maior aventura da origem das espécies, se C. Darwin levasse um homem honrado a defendê-lo. Charles levou o tio e o pai aquiesceu na viagem.

Ao longo desta obra, percebemos a forma como Charles Darwin era dedicado ao trabalho, tanto que a maior parte de Autobiografia é preenchida com memórias sobre o trabalho, evoluções nas suas descobertas, a forma como iniciou os estudos, etc. Sem dúvida alguma que Darwin foi um homem apaixonado pela ciência e pela natureza, pois a sua maior paixão era a caça, optando muitas vezes por esta em detrimento da ciência. Porém, um dia, Darwin deixou de caçar para se dedicar à natureza, preferindo observar a matar.

Actualmente não temos dúvidas em aceitar a teoria da evolução (o criacionismo faz parte do passado), não só porque é aquela que faz sentido, como é a única que consegue explicar sem equívocos, a origem e evolução do Homem. Na época vitoriana, a Bíblia explicava a origem do Homem, a forma como havia sido criado e sobretudo, quem o havia criado. Ora, quando Charles Darwin lança a sua teoria, a sociedade conservadora acusa-o de macaco por defender que nós vínhamos dos macacos! Darwin foi aconselhado por um amigo a não reagir, uma vez que a polémica não o serviria e à sua teoria.

Nesta pequena obra autobiográfica, Charles Darwin traz a lume algumas das descobertas que fez em vida, embora remeta o leitor para os seus livros publicados, na medida em que apenas estes têm a teoria e valem a pena ser lidos, ao contrário da sua autobiografia. Recorda igualmente as principais influências na sua vida e no seu percurso científico, refere as obras de colegas, os poetas que o “ajudaram” a contemplar a natureza, os familiares que tanto amou.

Não posso deixar de referir um aspecto relevante desta obra, facto que muito me admirou: a simplicidade e humildade com que está escrita. Charles Darwin não fala de si com soberba, fala de factos, fraquezas e virtudes, apresenta-se como um homem comum, um aluno vulgar que ninguém considerava, não esconde a sua ignorância em determinados assuntos. Assim como fala dos seus mestres e condiscípulos com saudade e imparcialidade: poderá parecer estranho ver no mesmo parágrafo um elogio e uma crítica a um professor, mas Darwin era transparente, separava o lado humano do lado profissional, tanto admirava a generosidade de um colega como criticava a avareza do mesmo na partilha de material.

Charles Darwin, o homem que descobriu a nossa ascendência simiesca.

“Autobiografia”

Alexandria Editores, 2004

terça-feira, 28 de julho de 2009

A Terceira Mentira


Das três partes é a menos forte, não só pela falta de violência, mas também por ausência de coesão. É de facto, um texto de finalização de história, onde acabamos por encontrar algumas explicações para acções dos livros anteriores.
Se na terceira parte nos deparamos com um conjunto surpreendente de revelações, também é verdade que lhe falta uma certa dose de dramatismo, pois as descobertas são tão avassaladoras que a narrativa perde alguma dimensão por um vazio de angústia. Claro que a ansiedade mantém-se, mas penso que o que rodeia o terceiro livro é uma profunda calma, como se fosse uma conversa de fim de vida.
O ponto mais interessante deste romance será, sem dúvida, os fios que o prendem aos romances anteriores, visto que a função maior d’ A Terceira Mentira, é precisamente atribuir aos dois primeiros livros um significado misterioso e obscuro. Na verdade, um véu de fumo cobre os livros anteriores e o que Agota Kristof faz no terceiro é soprar esse fumo para bem longe. Não revelarei aqui o que são as mentiras, mas garanto-vos que a surpresa é total. Em determinada altura senti uma espécie de traição por algumas acções de O Caderno Grande e A Prova não terem existido, senti-me vazio por ter acreditado em tudo o que lera. Mas afinal, faz tudo parte da ficção. Os irmãos já terão cerca de cinquenta anos e aparentemente, com as suas vidas estabilizadas. Do Lucas pouco saberemos, ou melhor, podemos duvidar sobre o que ele dizia de si próprio, mas também sobre o diário que manteve com o irmão. Sabemos sim, que tudo foi uma crença em ilusões, uma vida vivida por um mitómano. Chegamos a sentir misericórdia por a vida de Lucas não ter sido tão rica e plena de angústia, a tal simpatia pela dor alheia. Enfim, sempre podemos ler a obra e acreditar naquilo que, enquanto leitores, desejarmos.
Claus T., afinal Klaus T., é um poeta famoso e vive de forma desafogada. Devemos acreditar no que ele diz sobre o que é a sua vida? Talvez. Enquanto poeta preferiu o anonimato, exigindo ao editor que jamais revelasse a sua identidade e morada. A partir daqui cria-se outro mito: o do escritor ausente e que nunca aparece em público. Porém, o mais interessante em Klaus, é a forma como assina os livros: Klaus-Lucas. Podemos inferir que os dois não podem viver sem o outro; ou que um vive através do outro; ou ainda, que algum deles só existe dentro de um só. A mitomania. Finalmente, numa forma circular, a violência não desaparece inteiramente da obra quando esta acaba, na medida em que fica subjacente que ela permanecerá pela eternidade, através do último parágrafo, onde Klaus afirma já ter um plano para a sua morte. Mas apenas quando a sua mãe morrer.

A Prova


Na segunda parte da trilogia acompanhamos apenas a vida de um dos irmãos, Lucas T. O ambiente já não é de guerra, mas sim de ocupação, um governo revolucionário que controla o país e os habitantes. O outro irmão, Claus T., conseguiu passar a fronteira para encontrar um país em paz, mas dele nada sabemos ao longo do livro. A separação é necessária.
Novamente encontramos traços de humanismo em Lucas quando ele recebe em casa uma mãe e o filho, Yasmine e Mathias, um bastardo corcunda, que pese embora a sua deficiência física – ou pela existência da mesma -, consegue destacar-se dos seus colegas pela sua inteligência. A mãe não acredita nas capacidades do filho, mas Lucas não desiste e educa a criança como se fosse seu filho. Na verdade, Lucas vê em Mathias o seu irmão Claus, vê-se a si mesmo. No fundo, Mathias serve de espelho que reflecte o passado e ao mesmo tempo, é uma espécie de plataforma para o futuro, uma vez que Lucas quer mantê-lo junto de si por acreditar nas suas qualidades e por amá-lo.
Entretanto, Lucas já não é uma criança e as mulheres começam a insinuar-se na sua vida. Lamentavelmente, as relações de Lucas nunca são completas, uma vez que servem apenas para compensar perdas ou ausências, ou seja, Clara, uma mulher que lhe fornece livros incluídos no índex revolucionário, continua à espera de Thomas (seu marido) e jamais o esquecerá; Yasmine sonha com Lucas e também com o próprio pai, sendo este substituído por Lucas. Lucas opta por Clara, deixando Yasmine em casa, porém, Mathias jamais ficará para segundo plano. Aparece ainda outra jovem mulher, Agnès, cuja presença, indirectamente, conduzirá o pequeno Mathias à agonia.
Uma vez mais, como na primeira parte, somos confrontados com os vícios humanos, nomeadamente através do pai de Yasmine, o qual mantinha uma relação com a filha e que acabaria por ser pai e avô da mesma criança. De facto, Agota Kristof associa o momento guerra ou momento extremo da Humanidade a todos os caracteres hediondos do Homem. O primeiro desses caracteres será sempre o mais secreto, o mais interior em nós: o sexo. A obra é rica em personagens mais ou menos viciosas, desde um padre redimido a um pai que ama a filha fisicamente.
A guerra terminou e Lucas compra uma livraria, a mesma onde comprava com o seu irmão os cadernos para os apontamentos (o caderno grande). O anterior dono, Victor, vendeu a livraria porque queria ser escritor. Não chegou a sê-lo porque aquele momento de silêncio absoluto nunca o rodeou.
A tranquilidade parece ser uma certeza, mas mesmo no pós-guerra, a paz é uma subtileza que facilmente se desintegra. Aquilo que Lucas construíra acaba por desaparecer, tudo muda porque nada era sólido, aquilo que Lucas sabia e não revelava a ninguém era demasiado forte, por isso nunca ninguém acaba por fazer parte da vida de Lucas. Ninguém, a não ser Claus T., regressado a pequena cidade no fim do segundo livro. Entra Claus e desaparece Lucas.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

O Caderno Grande


A primeira parte de uma trilogia intrigante sobre dois irmãos inseparáveis, passada provavelmente na Segunda Guerra Mundial. Agota Kristof construiu uma narrativa fortíssima e conseguiu autonomizar os três romances, embora devam ser lidos como um todo, têm uma força que os torna num exercício invulgar de literatura.
Entregues pela mãe à avó materna – o pai combatia na frente -, os irmãos cedo se adaptam à violência e dureza dos tempos característicos da guerra, quer através de exercícios que os transforma num elemento resistente, como também a um plano rígido de sobrevivência. Na aldeia são os “idiotas”, catalogação simples para definir os inqualificáveis. Os irmãos – o nome só será revelado na segunda parte da trilogia -, conseguem compreender a violência que envolve a Humanidade, respondem-lhe com uma espécie de frieza humana que os afasta e os coloca num plano de alguma elevação, uma vez que agem como um só e acima de tudo, por terem um esquema para todos os problemas que possam surgir.
Ao longo do romance encontramos personagens que nos abalam pela sua simplicidade, outras que estão corrompidas pelo ambiente natural de uma guerra, outras libertam os seus vícios e entregam-se-lhes sem pudor. A avó dos miúdos é uma mulher que vive sob a suspeita de ter assassinado o marido; os irmãos matam animais para estarem preparados quando for necessário; o prior viola Lábio Rachado e tenta pagar o seu pecado com dinheiro; Lábio Rachado oferece o seu corpo porque é rejeitada fisicamente por todos. Morte? Diria vida, acima de tudo, um texto que glorifica a vida num momento de assassínios e descrenças.
No meio da amoralidade em que vive a pequena aldeia, os irmãos estudam por uma Bíblia e por um dicionário, aprendem a ler com a Bíblia e com o dicionário aprendem novas palavras. A Bíblia salva a Humanidade porque os irmãos são dos últimos representantes da nossa espécie. O prior rende-se à sabedoria dos irmãos, sobretudo à forma estruturada como pensam e manipulam.
Ao lermos o quotidiano dos irmãos, jamais sentimos repulsa pelas suas acções senão uma grande simpatia e compreensão, sabemos que entre matar e viver a fronteira é ténue. A humanidade que encontramos nos irmãos pode ser suspeita porque eles a negam, mas na verdade, eles ajudam e salvam, tratam e curam. Podem matar alguém, mas só se a pessoa interessada pedir que o façam.
Os irmãos inseparáveis. O final é absolutamente desconcertante, porém, é possível tudo o que se passa. Não foram as crianças as criadoras da guerra, mas são sem dúvida alguma, as primeiras vítimas.
O único problema desta obra é estar esgotada.
Agota Kristof abandonou a fábrica onde trabalhava e o marido, para poder escrever. Nasceu na Hungria e em 1956, aquando da invasão soviética, exilou-se na Suíça.


"Trilogia da Cidade de K."
Edições Asa, 1993

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Enterrar os Mortos


"Enterrar os Mortos" é uma obra documental sobre a morte de José Robles Pazos, escritor e tradutor de John dos Passos. É igualmente uma obra que analisa o conflito entre John dos Passos e Hemingway, amigos que se separaram por divergências políticas, uma vez que, depois do fuzilamento de Robles Pazos, John decidiu investigar e descobrir, não só os assassinos, mas também o motivo. Ernest Hemingway era partidário dos ideiais comunistas (mas pouco letrado na matéria, segundo alguns) e procurou convencer o amigo americano a desistir da procura. John dos Passos não quis ouvir e a cisão aconteceu com alguma violência.
Ao longo do livro descobrimos os passos que conduziram Robles à morte, mais do que a um desenrolar da sua vida literária ou pessoal. Aquando do início da Guerra Civil Espanhola, José Robles Pazos dava aulas na faculdade de Baltimore e optou por passar férias em Espanha. Nunca mais regressaria aos Estados Unidos.
Simpatizante da causa republicana, Robles ofereceu os seus serviços enquanto intérprete (sabia vagamente o russo) e passou a conviver com algumas personagens muito influentes da República, espanhóis e soviéticos. Ora, para além de intérprete, Robles Pazos era também um escritor que apreciava as tertúlias em cafés e supostamente, terá sido esse o seu pecado, uma vez que terá comentado descontraidamente pormenores da estratégia para combater os falangistas. Os soviéticos não gostaram. Prenderam-no, interrogaram-no e depois fuzilaram-no.
De forma incansável, John dos Passos investiga a morte do amigo espanhol, procurando ajudar a viúva e os filhos, cuja entrada na política não será alheia a morte do pai.
Um ponto interessante neste livro é que não é apenas uma análise exaustiva à morte de Robles, mas também aborda a vida de personagens secundárias, artistas que participaram na Guerra Civil Espanhola. São reveladas as intrigas políticas e as divergências entre comunistas e anarquistas.
Não será o melhor livro de Ignácio Martinez de Pisón (Saragoça, 1960), na medida em que a sua narrativa ganha força com a ficção e com um ritmo próprio, para além das personagens que habitam os seus romances, figuras muito longe de serem planas, tão características pelas suas idiossincrasias. Relembro as personagens do romance "Estradas Secundárias", em que são em si mesmas um livro, criando um universo muito rico e um dinamismo próprio deste autor. Em "Estradas Secundárias", Pisón retrata a vida de pai e filho, viajando num Citroën Boca de Sapo, pela Espanha franquista. Um filho que cresce em silêncio no meio dos fracassos do pai, um homem que teima ser empresário e agente de grandes estrelas de cinema e da música. Um road book que muito gostaria de ver adaptado ao cinema.


"Enterrar os Mortos"
Editorial Teorema, 2005
"Estradas Secundárias"
Assírio & Alvim, 1997