terça-feira, 3 de novembro de 2009

O Presidente


Um texto curioso logo pelo título: "O Presidente". Na verdade, ao longo do texto, Thomas Bernhard coloca no centro da acção e como grande impulsionadora das vidas alheias, a mulher do presidente. É esta personagem que disserta sobre os "hipotéticos" problemas da democracia ditatorial conduzida pelo seu marido.
A mulher do presidente é uma personagem patética e ao mesmo tempo profundamente melancólica, fala constantemente para uma alcofa vazia - o cão fora morto num atentado -, nos seus monólogos as outras personagens são convidadas a falar, mas sem espaço para o fazerem, uma vez que a presidenta fala em torrentes magníficas de disparates, resignam-se a um espaço interior que as desumaniza lentamente. É perceptível uma cisão entre classes sociais, a mulher do presidente e a criada (Senhora Feliz) representam os pólos opostos: a primeira decide o que a criada veste, o que diz, decide ainda sobre a forma como a criada deve viver; por outro lado, a criada limita-se a ser gente porque ainda veste as roupas que a sua patroa já não usa. É gente em último grau.
"O Presidente" é uma peça em cinco actos, dois dos quais passados em Portugal, aqueles em que o presidente se diverte a manipular a sua amante, uma actriz de segunda que apenas vive na sombra da sombra do estadista. Portugal acaba por ser retratado como um último paraíso europeu, a grande varanda para o Atlântico, os vícios e os prazeres no Casino do Estoril.
Thomas Bernhard não escolheu Portugal à toa - como podia? -, pois conheceu-o muito bem, em dois períodos distintos: revolução e pós-revolução. Assim como na sua peça o ditador cheira a ameaça de uma revolução, em Portugal uma revolução acabara de acontecer.
Não faltam adjectivos para caracterizar o espírito acintoso deste autor austríaco (nascido na Holanda), assim como a perturbação que percorre toda a sua obra. Uma peça de ritmo difícil pela pontuação, mas soberba pela descrição de uma ditadura em decadência.


"O Presidente"
Livros de Areia, 2008

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