terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Chuva na Madrugada


Praticamente desconhecida em Portugal, logo pouco lida, a obra de Paustovski é uma súmula de um certo realismo soviético com a poesia inerente a um homem profundamente ligado à natureza. Podemos dizer que a natureza é uma personagem constante na sua obra, a qual assume o papel de força decisiva na vida das outras personagens. O encanto dos rios e das árvores, a ligação que as pessoas têm às árvores da sua infância é suficiente para que abandonem tudo para se poderem dedicar à preservação de florestas imensas. Esta relação inquebrantável é visível no conto "O Barco Corroído", onde o velho Piotr deixa o comboio para cuidar das árvores que cuidara durante a sua infância.

Por outro lado, a memória surge como um elemento que aproxima as pessoas, uma forma de tempo comum vivido pelas personagens. No entanto, esta memória é por vezes exposta envolta numa neblina que confunde os pensamentos, a certeza de aquele conhecer tal mulher, mas não saber exactamente de quem se trata. Esta lembrança difusa pode representar uma provável inverossimilhança, ou seja, num país tão imenso como a Rússia, como podem duas pessoas ter a sensação de já se terem encontrado? É este fascínio pertubador que fortalece a obra de Paustovski, um homem e uma mulher que percorrem um campo escuro e lamacento para que ele possa tomar o barco e partir para sempre. O homem toca na mão da mulher, mas não consegue dizer que já a viu, ou pelo menos que dela tem uma vaga recordação. No fim, os dois ficam na escuridão, encharcados e sem um tempo que seja dos dois.

Outro elemento muito importante neste pequeno livro de contos é o peso da família, nalgus casos visto como uma entrega absoluta e incondicional, noutros como uma responsabilidade absurda que leva a que uma pessoa se anule em proveito da outra. "O Telegrama" é dos textos mais perfeitos desta colectânea por descrever de forma tão clara a problemática da dependência de familiares. Sem dúvida alguma a disparidade de dois mundos - o meio artístico e uma velha mãe nos confins da Rússia - é uma questão delicada, porém, como conciliar as aspirações de uma jovem artista e a sua ligação com a mãe? Konstantin Paustovski não pretendeu colocar em conflito a arte com a família, senão a cidade com o campo, onde na primeira é o ritmo frenético que comanda as nossas vidas.

Finalmente, destaco o penúltimo conto deste livro, "Os Rios Inundados", um texto de uma beleza única que tem como personagem principal Mikhail Lermontóv, poeta, soldado, nobre de valores, morto em duelo.
"Chuva na Madrugada"
Editorial Inova, 1973

sábado, 28 de novembro de 2009

Contos Escolhidos


Conhecido essencialmente como dramaturgo, Luigi Pirandello foi um notável contista. Os seus contos possuem características que os tornam especiais, nomeadamente a riqueza das personagens, onde o que mais se destaca é uma certa solidariedade pelos elementos mais baixos do povo. Pirandello, nestes contos, aborda aturadamente a miséria italiana (ou humana, diríamos de forma mais lata), focando-se na zona sul, a tipicamente pobre. As personagens demonstram uma força de adaptação incrível às circunstâncias, muitas vezes ferozes e mortais, perpassando um humor negro que servirá precisamente para desdramatizar o acto de escrever, mas não aquilo que está escrito, ou seja, Luigi Pirandello opta por narrar algumas histórias dos miseráveis da vida, com humor, mas não colocando este na vida das personagens, senão no próprio absurdo da vida daquelas.
Uma das características que mais me fascina nos contos de Pirandello é o ritmo certo que utiliza nas suas histórias, nunca demasiado curtas, nunca demasiado longas, aquilo que acontece é marcado pela pontualidade dos grandes narradores. Os contos mais curtos como Lucilla, atestam a questão do ritmo e do humor que desliza suavemente pela crueldade. Em menos de seis páginas, Pirandello conta a história de uma rapariga que foge do convento para a casa do seu amado, porém, quando chega a casa dele, é confrontada com um grupo de homens (que a violará?) e o seu "namorado" aponta candidamente para um outro jovem e dirá: "Olha! Aqui tens o teu noivo." A moral deste conto? Provavelmente nenhuma, o essencial é desconstruir o dramatismo para torná-lo ainda mais pesado. Neste sentido, Pirandello é um narrador ausente, se ouvimos a sua voz é porque foi da sua lavra que estes contos saíram, ao mesmo tempo a sua voz cala-se porque só ouvimos aquilo que as personagens dizem.
A religião, a morte, a miséria, a traição (a figura do cornudo é recorrente) são os temas mais queridos de Pirandello, uma vez que são uma espécie de fio condutor que torna coesos todos os contos deste volume. Para a questão da miséria, o conto que melhor ilustra é "A Caderneta Vermelha", onde mulheres vão buscar órfãos em troca da tal caderneta que lhes dará uma pequena pensão. Depois, os malteses comprarão as cadernetas por metade do preço em troca de enxovais, assim as raparigas pobres poderão casar. "A verdade" explora a defesa em tribunal de um homem que matou a mulher por esta ser adúltera, de facto, a defesa arranca risos dos jurados e testemunhas, mas também do juiz. "O Tabernáculo" ilustra com ironia a questão da fé, um católico a quem é encomendada a construção de um tabernáculo, acaba por substituir Cristo e optar como morada o monumento de fé que havia construído.
A introdução nos contos de Pirandello servem como isco: aparentemente falam de uma coisa que distrai o leitor, para em seguida o parágrafo seguinte já falar de outra história (tudo é aparência).
"Contos Escolhidos"
Editorial Verbo, 1972

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Três Contos


Escrever sobre Máximo Gorki é escrever sobre a sociedade russa; ler Máximo Gorki é saber a cultura de um povo magnífico. Nestes "Três Contos" deparamo-nos com temas muito particulares da literatura russa: a condição miserável dos operários - é um tema transversal à literatura russa e não só à literatura soviética -, onde a dureza do quotidiano marca profundamente o carácter das pessoas; as relações familiares, nomeadamente o respeito pelos mais velhos, o sacrifício praticado por estes para que aqueles não sintam a fome de todos os dias; o onírico eslavo que tem como morada as tundras e as planícies vastas do frio.

Máximo Gorki é um dos expoentes maiores da literatura comprometida, durante muito tempo o escritor "oficial" da revolução, o escritor que imortalizou Lénine e que com este trocou uma correspondência sincera e riquíssima. Naturalmente que a sua obra de maior fama é "A Mãe", romance ideológico, mas também de amor e dedicação, não mãe-filho e vice-versa, como filho-humanidade.

Embora seja um autor imediatamente conotado com a revolução e com a luta dos oprimidos, Máximo Gorki acaba por ter uma obra diversa e multifacetada, através de páginas de magnífica beleza e poesia, páginas que servem perfeitamente para caracterizar um povo tão heterogéneo. Nesta pequena obra, o autor russo escreve de uma forma avassaladora sobre as agruras de um avô e de um neto, miseráveis na condição de seres humanos, pedintes de cidade em cidade, esfomeados e desesperados num país frio e infinito. O avô tudo fará para que o neto não deixe de comer e que jamais sinta no estômago a fome que ele já testemunhou. Para que a miséria seja mitigada, por vezes, é necessário recorrer a expedientes menos próprios, consequência imediata da deplorabilidade da condição humana. É precisamente através de um expediente nada honroso que a tragédia afasta os dois, o conflito é dramático, o final inesperado. O amor jamais os separou e aquilo que está reservado a ambos é prova disso.

Por outro lado, temos uma fada que quer conhecer os homens e o mundo destes, pese embora os avisos da mãe ainda soem nos seus ouvidos. A perfídia e maldade derrotam a ingenuidade e a pureza magistral do coração da fada, esta sofre porque anseia conhecer o mundo e a vida para lá da floresta cerrada. Neste caso, temos um pastor que alicia a fada com canções cantadas por uma maravilhosa voz, mas no fundo, não passa de beleza dissimulada para capturar a verdadeira, aquela que a só a pureza pode ter.

Finalmente, o último conto deste pequeno livro, aborda a vida nas salinas, o trabalho e as relações tensas entre quem está dependente daquele trabalho para sobreviver e os que acabam de chegar. A relação de ameaça entre quem está empregado e quem procura desesperadamente agarrar-se a um trabalho desumano, um tema que podemos considerar actual e que seria precisamente algo que Gorki criticaria nos nossos dias. O espírito que perpassa em todo este conto é uma marca enraízada na cultura russa: violenta e sarcástica, mas também humana e solidária.
"Três Contos"
Editorial Inova, 1972

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A História me Absolverá


Há livros que falam da sinceridade e outros preferem falar com sinceridade. No caso do mítico livro de Fidel Castro "A História me Absolverá", pertence, sem dúvida alguma, ao segundo grupo mencionado.

Nem todos as obras que partem de um eu reflectem exactamente a pessoa mais isolada da gramática, alguns são efabulados, outros serão exagerados, outros omissos, alguns negativos, etc. Perante as páginas deste testemunho histórico somos confrontados com uma honestidade que constrange o leitor porque é apanhado de surpresa, raras vezes encontramos sinceridade numa obra que tem como figura central uma pessoa de poder ou de proto-poder, na medida em que é preferível adornar as afirmações pensando já no futuro cargo.

Como já tinha visto no "Biografia a Duas Vozes" de Ignacio Ramognet (ed. Campo das Letras) e no filme "El Comandante" de Oliver Stone, Fidel Castro jamais recusa responder às perguntas feitas, assim como não nega o bem e o mal praticados. Acima de tudo, Fidel Castro assume os erros que cometeu, assume a responsabilidade de decisões polémicas, partilha a glória e as conquistas do povo cubano.

Neste livro, Fidel Castro defende-se perante os tribunais de Fulgêncio Batista (por isso aconselhável a pessoas do Direito e da Lei), após ter sido capturado em acções de guerrilha e tentativas de depor o ditador Fulgêncio. Em certos momentos, a defesa de Fidel é inexorável e sublime, abraça o povo e os ideiais socialistas, renega a influência norte-americana e entrelinhas, deixa a sugestão da revolução vitoriosa de 1959. Este livro tornou-se o manifesto da reistência, fruto das denúncias e ataques realizados por Fidel à venalidade do regime de Fulgêncio Batista. Ao longo da auto-defesa, Castro enumera ilegalidades, corrupções, violações, abusos de poder. Revela números e casos de corrupção praticados pelo ditador e pelos seus esbirros.

Quer se goste ou se odeie Fidel Castro, uma certeza podemos ter: a sua figura carismática é incontornável e com certeza ocupará para sempre um lugar na História mundial.


"A História me Absolverá"

Editorial Presença, 1970

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O Último dia de um Condenado


Este romance de natureza epistolográfica retrata a angústia de um condenado à morte, apodrecendo no chamado corredor da morte. A personagem principal (suposto autor das cartas que mais viriam parar às mãos de Victor Hugo) é um homicida condenado à pena capital que vai descrevendo o seu quotidiano e a forma vã como ainda aguarda um indulto.
O condenado vai sendo transferido de celas e, à medida que a execução se aproxima, estas vão-se tornando cada vez mais desconfortáveis e pequenas. O terror mental começa a surtir efeito porque ele já não domina a razão e entra em pânico com o aproximar do dia. Os seus pensamentos são dirigidos à sua pequena filha, sente misericórdia por ela, saudades, mas teme igualmente que no futuro tenha vergonha por ter o nome do pai, um nome de assassino.
A introdução de outras personagens serve para aumentar o conflito, nomeadamente a visita do padre, as conversas com outros prisioneiros, verdadeiros criminosos sem escrúpulos, homens que retiram vidas apenas porque não sabem fazer outra coisa. As visitas de carcereiros ou do chefe da prisão estimulam o pânico, na medida em que a vida não era valorizada e o condenado que escreve será o próximo a perder a cabeça na praça da vila, rodeado por populares que levam os filhos em passeio, afinal será um dia de festa.
Antes de morrer ouvirá uma jovem rapariga cantar uma música sinistra, ao longo de vários dias, uma bela voz com palavras tão amargas. Tentará igualmente, através de um estratagema engenhoso, ludibriar um carcereiro, levando-o a aceitar trocar de roupas. Por momentos quase conseguiu.
Victor Hugo escreveu esta obra para que pudesse ser um manifesto contra a pena de morte, uma voz praticamente isolada na Europa, tendo em conta que o Humanismo não seria prática corrente.

"O Último Dia de um Condenado"
Prefácio, 2002

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Audiência, Vernissage e Petição


As três peças de teatro reunidas neste livro abalam-me por características importantíssimas no teatro: a tensão, a confusão psicológica que conduz ao absurdo, a manipulação mental com o propósito de conquista.
O ambiente etílico da primeira peça introduz-nos imediatamente no centro do conflito, um escritório que tresanda a cerveja e o cervejeiro que não pára de beber. Vanek, o empregado que vai falar com o responsável, é constantemente convidado a beber, afinal de contas está numa fábrica de cerveja. O empregado prefere não beber e por isso a lucidez mantém-se no seu espírito.
Uma das técnicas utilizadas por Václav Havel é a repetição, as personagens são levadas a repetir frases, por vezes até à exaustão. Será para enfatizar uma ideia? Penso que será para o espectador se centrar no perfil psicológico da personagem, quer para compreender a sua fraqueza ou objectivos obscuros, quer absurdizar a acção. De facto, o dramaturgo checo domina o ritmo das palavras e o seu uso, as repetições surgem nos momentos exactos e às tantas o próprio leitor dá por si a cantar interiormente as falas das personagens.
Para atingir a intensidade que explode nos palcos, Václav Havel opta por frases curtas e linguagem vulgar, sem que isso destrua a beleza dos seus textos, para intensificar a angústia de determinada personagem, ou por outro lado, para destacar o absurdo de tal figura. A literatura de leste desconstrói realidades adquiridas e caricaturiza aquilo que é o poder instalado, atingindo por vezes instantes de sátira à grotesca existência dos homens de estado, mas também daqueles que os temem. Exemplo disso é a peça "Petição": dois intelectuais discutem sobre companheiros presos e perseguidos, discutem a possibilidade da criação de uma petição e posterior publicação no ocidente. Na verdade, um procura que seja o outro a assinar, enquanto que este já tem o documento preparado. Encontramos aqui um jogo extraordinário de pressões e medos, onde ninguém quer entregar o coração nem perdê-lo por confiar em demasia.
Em quem confiar nas peças de Václav Havel?


"Audiência, Vernissage e Petição"
Relógio D'Água Editores, 1990

A Traição do Padre Martinho


Bernardo Santareno encarna na perfeição o espírito do autor comprometido com o seu tempo, com a sociedade que o representava. Sem dúvida alguma um dos dramaturgos mais importantes da Literatura Portuguesa do século XX, quer pela pertinência das suas peças como pela denúncia que as suas personagens espalhavam.
"A Traição do Padre Martinho" coloca em cena um conflito de classes entre o povo e o poder económico, representado pelo lavrador e o engenheiro, proprietário da única fábrica existente no Cortiçal. O padre Martinho, cristão convicto, procura ajudar os paroquianos naquilo que puder, sobretudo nas questões profissionais. Essencialmente crê como sua obrigação impedir que as pessoas da aldeia sejam exploradas e por isso ajuda-as a lutar pelos seus direitos, facto que conduz a algumas greves e paralisações que muito desagrada o engenheiro.
Se por um lado temos um padre que luta pelo povo, por outro temos um vigário que luta pelos poderosos, uma vez que são estes que reabilitam as igrejas, mesmo que muitas vezes não as frequentem. Na verdade, o padre Martinho assume-se um quase marxista-cristão, categoria que não é tão absurda, se tomarmos em linha de conta o cruzamento de ideias das duas correntes e a forma como ambas podem coexistir.
No entanto, o povo está sempre sozinho e o poder sempre acompanhado por outro poder. Quando a situação se torna demasiado incómoda, o vigário, secundado pelo engenheiro e pelo lavrador, recorre ao bispo para transferir o padre Martinho para muito longe. A situação torna-se tensa, o poder não recua, as ordens estão dadas. O povo não abandona o padre e este fica refém na casa onde vivia, a população não permite que o padre Martinho seja expulso e às tantas, o conflito passa a ser entre povo e poder, sendo que o próprio padre já não é ouvido pelas pessoas.
A tragédia está iminente e de facto acaba por acontecer no desvario do poder em enviar para a aldeia as forças da ordem para suster o povo.
Bernardo Santareno recorre a algumas técnicas eficazes, nomeadamente o uso de personagens que são porta-estandartes neutros, como também a multiplicação física do padre Martinho, quando o conflito interior atinge o ponto máximo. Outro aspecto importante é a presença do narrador, figura imparcial que torna mais verdadeira a acção.

"A Traição do Padre Martinho"
Galeria Panorama, S/D