quinta-feira, 23 de julho de 2009

O Caderno Grande


A primeira parte de uma trilogia intrigante sobre dois irmãos inseparáveis, passada provavelmente na Segunda Guerra Mundial. Agota Kristof construiu uma narrativa fortíssima e conseguiu autonomizar os três romances, embora devam ser lidos como um todo, têm uma força que os torna num exercício invulgar de literatura.
Entregues pela mãe à avó materna – o pai combatia na frente -, os irmãos cedo se adaptam à violência e dureza dos tempos característicos da guerra, quer através de exercícios que os transforma num elemento resistente, como também a um plano rígido de sobrevivência. Na aldeia são os “idiotas”, catalogação simples para definir os inqualificáveis. Os irmãos – o nome só será revelado na segunda parte da trilogia -, conseguem compreender a violência que envolve a Humanidade, respondem-lhe com uma espécie de frieza humana que os afasta e os coloca num plano de alguma elevação, uma vez que agem como um só e acima de tudo, por terem um esquema para todos os problemas que possam surgir.
Ao longo do romance encontramos personagens que nos abalam pela sua simplicidade, outras que estão corrompidas pelo ambiente natural de uma guerra, outras libertam os seus vícios e entregam-se-lhes sem pudor. A avó dos miúdos é uma mulher que vive sob a suspeita de ter assassinado o marido; os irmãos matam animais para estarem preparados quando for necessário; o prior viola Lábio Rachado e tenta pagar o seu pecado com dinheiro; Lábio Rachado oferece o seu corpo porque é rejeitada fisicamente por todos. Morte? Diria vida, acima de tudo, um texto que glorifica a vida num momento de assassínios e descrenças.
No meio da amoralidade em que vive a pequena aldeia, os irmãos estudam por uma Bíblia e por um dicionário, aprendem a ler com a Bíblia e com o dicionário aprendem novas palavras. A Bíblia salva a Humanidade porque os irmãos são dos últimos representantes da nossa espécie. O prior rende-se à sabedoria dos irmãos, sobretudo à forma estruturada como pensam e manipulam.
Ao lermos o quotidiano dos irmãos, jamais sentimos repulsa pelas suas acções senão uma grande simpatia e compreensão, sabemos que entre matar e viver a fronteira é ténue. A humanidade que encontramos nos irmãos pode ser suspeita porque eles a negam, mas na verdade, eles ajudam e salvam, tratam e curam. Podem matar alguém, mas só se a pessoa interessada pedir que o façam.
Os irmãos inseparáveis. O final é absolutamente desconcertante, porém, é possível tudo o que se passa. Não foram as crianças as criadoras da guerra, mas são sem dúvida alguma, as primeiras vítimas.
O único problema desta obra é estar esgotada.
Agota Kristof abandonou a fábrica onde trabalhava e o marido, para poder escrever. Nasceu na Hungria e em 1956, aquando da invasão soviética, exilou-se na Suíça.


"Trilogia da Cidade de K."
Edições Asa, 1993

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