sexta-feira, 31 de julho de 2009

Autobiografia


No dia 24 de Novembro de 1859, em Londres, eram vendidos 1250 exemplares d’ A Origem das Espécies. Este dia assinalou o lançamento da obra. O naturalista Charles Darwin finalmente publicava o seu livro que viria a revolucionar a ciência, a religião e, consequentemente, o mundo. Um livro que demorou perto de 20 anos a ser publicado, quer pela melhoria e certeza das afirmações, mas também para ser tornado público num momento mais favorável.

No livro Autobiografia, Darwin fala sobre este assunto, sobre a forma como ele próprio encarou a polémica; aborda igualmente a sua viagem no Beagle, nomeadamente a disputa que teve com o pai, uma vez que o pai desconsiderava a profissão de naturalista. Chegaram a acordo e Robert Darwin permitiria que o filho embarcasse na maior aventura da origem das espécies, se C. Darwin levasse um homem honrado a defendê-lo. Charles levou o tio e o pai aquiesceu na viagem.

Ao longo desta obra, percebemos a forma como Charles Darwin era dedicado ao trabalho, tanto que a maior parte de Autobiografia é preenchida com memórias sobre o trabalho, evoluções nas suas descobertas, a forma como iniciou os estudos, etc. Sem dúvida alguma que Darwin foi um homem apaixonado pela ciência e pela natureza, pois a sua maior paixão era a caça, optando muitas vezes por esta em detrimento da ciência. Porém, um dia, Darwin deixou de caçar para se dedicar à natureza, preferindo observar a matar.

Actualmente não temos dúvidas em aceitar a teoria da evolução (o criacionismo faz parte do passado), não só porque é aquela que faz sentido, como é a única que consegue explicar sem equívocos, a origem e evolução do Homem. Na época vitoriana, a Bíblia explicava a origem do Homem, a forma como havia sido criado e sobretudo, quem o havia criado. Ora, quando Charles Darwin lança a sua teoria, a sociedade conservadora acusa-o de macaco por defender que nós vínhamos dos macacos! Darwin foi aconselhado por um amigo a não reagir, uma vez que a polémica não o serviria e à sua teoria.

Nesta pequena obra autobiográfica, Charles Darwin traz a lume algumas das descobertas que fez em vida, embora remeta o leitor para os seus livros publicados, na medida em que apenas estes têm a teoria e valem a pena ser lidos, ao contrário da sua autobiografia. Recorda igualmente as principais influências na sua vida e no seu percurso científico, refere as obras de colegas, os poetas que o “ajudaram” a contemplar a natureza, os familiares que tanto amou.

Não posso deixar de referir um aspecto relevante desta obra, facto que muito me admirou: a simplicidade e humildade com que está escrita. Charles Darwin não fala de si com soberba, fala de factos, fraquezas e virtudes, apresenta-se como um homem comum, um aluno vulgar que ninguém considerava, não esconde a sua ignorância em determinados assuntos. Assim como fala dos seus mestres e condiscípulos com saudade e imparcialidade: poderá parecer estranho ver no mesmo parágrafo um elogio e uma crítica a um professor, mas Darwin era transparente, separava o lado humano do lado profissional, tanto admirava a generosidade de um colega como criticava a avareza do mesmo na partilha de material.

Charles Darwin, o homem que descobriu a nossa ascendência simiesca.

“Autobiografia”

Alexandria Editores, 2004

terça-feira, 28 de julho de 2009

A Terceira Mentira


Das três partes é a menos forte, não só pela falta de violência, mas também por ausência de coesão. É de facto, um texto de finalização de história, onde acabamos por encontrar algumas explicações para acções dos livros anteriores.
Se na terceira parte nos deparamos com um conjunto surpreendente de revelações, também é verdade que lhe falta uma certa dose de dramatismo, pois as descobertas são tão avassaladoras que a narrativa perde alguma dimensão por um vazio de angústia. Claro que a ansiedade mantém-se, mas penso que o que rodeia o terceiro livro é uma profunda calma, como se fosse uma conversa de fim de vida.
O ponto mais interessante deste romance será, sem dúvida, os fios que o prendem aos romances anteriores, visto que a função maior d’ A Terceira Mentira, é precisamente atribuir aos dois primeiros livros um significado misterioso e obscuro. Na verdade, um véu de fumo cobre os livros anteriores e o que Agota Kristof faz no terceiro é soprar esse fumo para bem longe. Não revelarei aqui o que são as mentiras, mas garanto-vos que a surpresa é total. Em determinada altura senti uma espécie de traição por algumas acções de O Caderno Grande e A Prova não terem existido, senti-me vazio por ter acreditado em tudo o que lera. Mas afinal, faz tudo parte da ficção. Os irmãos já terão cerca de cinquenta anos e aparentemente, com as suas vidas estabilizadas. Do Lucas pouco saberemos, ou melhor, podemos duvidar sobre o que ele dizia de si próprio, mas também sobre o diário que manteve com o irmão. Sabemos sim, que tudo foi uma crença em ilusões, uma vida vivida por um mitómano. Chegamos a sentir misericórdia por a vida de Lucas não ter sido tão rica e plena de angústia, a tal simpatia pela dor alheia. Enfim, sempre podemos ler a obra e acreditar naquilo que, enquanto leitores, desejarmos.
Claus T., afinal Klaus T., é um poeta famoso e vive de forma desafogada. Devemos acreditar no que ele diz sobre o que é a sua vida? Talvez. Enquanto poeta preferiu o anonimato, exigindo ao editor que jamais revelasse a sua identidade e morada. A partir daqui cria-se outro mito: o do escritor ausente e que nunca aparece em público. Porém, o mais interessante em Klaus, é a forma como assina os livros: Klaus-Lucas. Podemos inferir que os dois não podem viver sem o outro; ou que um vive através do outro; ou ainda, que algum deles só existe dentro de um só. A mitomania. Finalmente, numa forma circular, a violência não desaparece inteiramente da obra quando esta acaba, na medida em que fica subjacente que ela permanecerá pela eternidade, através do último parágrafo, onde Klaus afirma já ter um plano para a sua morte. Mas apenas quando a sua mãe morrer.

A Prova


Na segunda parte da trilogia acompanhamos apenas a vida de um dos irmãos, Lucas T. O ambiente já não é de guerra, mas sim de ocupação, um governo revolucionário que controla o país e os habitantes. O outro irmão, Claus T., conseguiu passar a fronteira para encontrar um país em paz, mas dele nada sabemos ao longo do livro. A separação é necessária.
Novamente encontramos traços de humanismo em Lucas quando ele recebe em casa uma mãe e o filho, Yasmine e Mathias, um bastardo corcunda, que pese embora a sua deficiência física – ou pela existência da mesma -, consegue destacar-se dos seus colegas pela sua inteligência. A mãe não acredita nas capacidades do filho, mas Lucas não desiste e educa a criança como se fosse seu filho. Na verdade, Lucas vê em Mathias o seu irmão Claus, vê-se a si mesmo. No fundo, Mathias serve de espelho que reflecte o passado e ao mesmo tempo, é uma espécie de plataforma para o futuro, uma vez que Lucas quer mantê-lo junto de si por acreditar nas suas qualidades e por amá-lo.
Entretanto, Lucas já não é uma criança e as mulheres começam a insinuar-se na sua vida. Lamentavelmente, as relações de Lucas nunca são completas, uma vez que servem apenas para compensar perdas ou ausências, ou seja, Clara, uma mulher que lhe fornece livros incluídos no índex revolucionário, continua à espera de Thomas (seu marido) e jamais o esquecerá; Yasmine sonha com Lucas e também com o próprio pai, sendo este substituído por Lucas. Lucas opta por Clara, deixando Yasmine em casa, porém, Mathias jamais ficará para segundo plano. Aparece ainda outra jovem mulher, Agnès, cuja presença, indirectamente, conduzirá o pequeno Mathias à agonia.
Uma vez mais, como na primeira parte, somos confrontados com os vícios humanos, nomeadamente através do pai de Yasmine, o qual mantinha uma relação com a filha e que acabaria por ser pai e avô da mesma criança. De facto, Agota Kristof associa o momento guerra ou momento extremo da Humanidade a todos os caracteres hediondos do Homem. O primeiro desses caracteres será sempre o mais secreto, o mais interior em nós: o sexo. A obra é rica em personagens mais ou menos viciosas, desde um padre redimido a um pai que ama a filha fisicamente.
A guerra terminou e Lucas compra uma livraria, a mesma onde comprava com o seu irmão os cadernos para os apontamentos (o caderno grande). O anterior dono, Victor, vendeu a livraria porque queria ser escritor. Não chegou a sê-lo porque aquele momento de silêncio absoluto nunca o rodeou.
A tranquilidade parece ser uma certeza, mas mesmo no pós-guerra, a paz é uma subtileza que facilmente se desintegra. Aquilo que Lucas construíra acaba por desaparecer, tudo muda porque nada era sólido, aquilo que Lucas sabia e não revelava a ninguém era demasiado forte, por isso nunca ninguém acaba por fazer parte da vida de Lucas. Ninguém, a não ser Claus T., regressado a pequena cidade no fim do segundo livro. Entra Claus e desaparece Lucas.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

O Caderno Grande


A primeira parte de uma trilogia intrigante sobre dois irmãos inseparáveis, passada provavelmente na Segunda Guerra Mundial. Agota Kristof construiu uma narrativa fortíssima e conseguiu autonomizar os três romances, embora devam ser lidos como um todo, têm uma força que os torna num exercício invulgar de literatura.
Entregues pela mãe à avó materna – o pai combatia na frente -, os irmãos cedo se adaptam à violência e dureza dos tempos característicos da guerra, quer através de exercícios que os transforma num elemento resistente, como também a um plano rígido de sobrevivência. Na aldeia são os “idiotas”, catalogação simples para definir os inqualificáveis. Os irmãos – o nome só será revelado na segunda parte da trilogia -, conseguem compreender a violência que envolve a Humanidade, respondem-lhe com uma espécie de frieza humana que os afasta e os coloca num plano de alguma elevação, uma vez que agem como um só e acima de tudo, por terem um esquema para todos os problemas que possam surgir.
Ao longo do romance encontramos personagens que nos abalam pela sua simplicidade, outras que estão corrompidas pelo ambiente natural de uma guerra, outras libertam os seus vícios e entregam-se-lhes sem pudor. A avó dos miúdos é uma mulher que vive sob a suspeita de ter assassinado o marido; os irmãos matam animais para estarem preparados quando for necessário; o prior viola Lábio Rachado e tenta pagar o seu pecado com dinheiro; Lábio Rachado oferece o seu corpo porque é rejeitada fisicamente por todos. Morte? Diria vida, acima de tudo, um texto que glorifica a vida num momento de assassínios e descrenças.
No meio da amoralidade em que vive a pequena aldeia, os irmãos estudam por uma Bíblia e por um dicionário, aprendem a ler com a Bíblia e com o dicionário aprendem novas palavras. A Bíblia salva a Humanidade porque os irmãos são dos últimos representantes da nossa espécie. O prior rende-se à sabedoria dos irmãos, sobretudo à forma estruturada como pensam e manipulam.
Ao lermos o quotidiano dos irmãos, jamais sentimos repulsa pelas suas acções senão uma grande simpatia e compreensão, sabemos que entre matar e viver a fronteira é ténue. A humanidade que encontramos nos irmãos pode ser suspeita porque eles a negam, mas na verdade, eles ajudam e salvam, tratam e curam. Podem matar alguém, mas só se a pessoa interessada pedir que o façam.
Os irmãos inseparáveis. O final é absolutamente desconcertante, porém, é possível tudo o que se passa. Não foram as crianças as criadoras da guerra, mas são sem dúvida alguma, as primeiras vítimas.
O único problema desta obra é estar esgotada.
Agota Kristof abandonou a fábrica onde trabalhava e o marido, para poder escrever. Nasceu na Hungria e em 1956, aquando da invasão soviética, exilou-se na Suíça.


"Trilogia da Cidade de K."
Edições Asa, 1993

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Enterrar os Mortos


"Enterrar os Mortos" é uma obra documental sobre a morte de José Robles Pazos, escritor e tradutor de John dos Passos. É igualmente uma obra que analisa o conflito entre John dos Passos e Hemingway, amigos que se separaram por divergências políticas, uma vez que, depois do fuzilamento de Robles Pazos, John decidiu investigar e descobrir, não só os assassinos, mas também o motivo. Ernest Hemingway era partidário dos ideiais comunistas (mas pouco letrado na matéria, segundo alguns) e procurou convencer o amigo americano a desistir da procura. John dos Passos não quis ouvir e a cisão aconteceu com alguma violência.
Ao longo do livro descobrimos os passos que conduziram Robles à morte, mais do que a um desenrolar da sua vida literária ou pessoal. Aquando do início da Guerra Civil Espanhola, José Robles Pazos dava aulas na faculdade de Baltimore e optou por passar férias em Espanha. Nunca mais regressaria aos Estados Unidos.
Simpatizante da causa republicana, Robles ofereceu os seus serviços enquanto intérprete (sabia vagamente o russo) e passou a conviver com algumas personagens muito influentes da República, espanhóis e soviéticos. Ora, para além de intérprete, Robles Pazos era também um escritor que apreciava as tertúlias em cafés e supostamente, terá sido esse o seu pecado, uma vez que terá comentado descontraidamente pormenores da estratégia para combater os falangistas. Os soviéticos não gostaram. Prenderam-no, interrogaram-no e depois fuzilaram-no.
De forma incansável, John dos Passos investiga a morte do amigo espanhol, procurando ajudar a viúva e os filhos, cuja entrada na política não será alheia a morte do pai.
Um ponto interessante neste livro é que não é apenas uma análise exaustiva à morte de Robles, mas também aborda a vida de personagens secundárias, artistas que participaram na Guerra Civil Espanhola. São reveladas as intrigas políticas e as divergências entre comunistas e anarquistas.
Não será o melhor livro de Ignácio Martinez de Pisón (Saragoça, 1960), na medida em que a sua narrativa ganha força com a ficção e com um ritmo próprio, para além das personagens que habitam os seus romances, figuras muito longe de serem planas, tão características pelas suas idiossincrasias. Relembro as personagens do romance "Estradas Secundárias", em que são em si mesmas um livro, criando um universo muito rico e um dinamismo próprio deste autor. Em "Estradas Secundárias", Pisón retrata a vida de pai e filho, viajando num Citroën Boca de Sapo, pela Espanha franquista. Um filho que cresce em silêncio no meio dos fracassos do pai, um homem que teima ser empresário e agente de grandes estrelas de cinema e da música. Um road book que muito gostaria de ver adaptado ao cinema.


"Enterrar os Mortos"
Editorial Teorema, 2005
"Estradas Secundárias"
Assírio & Alvim, 1997