sábado, 28 de novembro de 2009

Contos Escolhidos


Conhecido essencialmente como dramaturgo, Luigi Pirandello foi um notável contista. Os seus contos possuem características que os tornam especiais, nomeadamente a riqueza das personagens, onde o que mais se destaca é uma certa solidariedade pelos elementos mais baixos do povo. Pirandello, nestes contos, aborda aturadamente a miséria italiana (ou humana, diríamos de forma mais lata), focando-se na zona sul, a tipicamente pobre. As personagens demonstram uma força de adaptação incrível às circunstâncias, muitas vezes ferozes e mortais, perpassando um humor negro que servirá precisamente para desdramatizar o acto de escrever, mas não aquilo que está escrito, ou seja, Luigi Pirandello opta por narrar algumas histórias dos miseráveis da vida, com humor, mas não colocando este na vida das personagens, senão no próprio absurdo da vida daquelas.
Uma das características que mais me fascina nos contos de Pirandello é o ritmo certo que utiliza nas suas histórias, nunca demasiado curtas, nunca demasiado longas, aquilo que acontece é marcado pela pontualidade dos grandes narradores. Os contos mais curtos como Lucilla, atestam a questão do ritmo e do humor que desliza suavemente pela crueldade. Em menos de seis páginas, Pirandello conta a história de uma rapariga que foge do convento para a casa do seu amado, porém, quando chega a casa dele, é confrontada com um grupo de homens (que a violará?) e o seu "namorado" aponta candidamente para um outro jovem e dirá: "Olha! Aqui tens o teu noivo." A moral deste conto? Provavelmente nenhuma, o essencial é desconstruir o dramatismo para torná-lo ainda mais pesado. Neste sentido, Pirandello é um narrador ausente, se ouvimos a sua voz é porque foi da sua lavra que estes contos saíram, ao mesmo tempo a sua voz cala-se porque só ouvimos aquilo que as personagens dizem.
A religião, a morte, a miséria, a traição (a figura do cornudo é recorrente) são os temas mais queridos de Pirandello, uma vez que são uma espécie de fio condutor que torna coesos todos os contos deste volume. Para a questão da miséria, o conto que melhor ilustra é "A Caderneta Vermelha", onde mulheres vão buscar órfãos em troca da tal caderneta que lhes dará uma pequena pensão. Depois, os malteses comprarão as cadernetas por metade do preço em troca de enxovais, assim as raparigas pobres poderão casar. "A verdade" explora a defesa em tribunal de um homem que matou a mulher por esta ser adúltera, de facto, a defesa arranca risos dos jurados e testemunhas, mas também do juiz. "O Tabernáculo" ilustra com ironia a questão da fé, um católico a quem é encomendada a construção de um tabernáculo, acaba por substituir Cristo e optar como morada o monumento de fé que havia construído.
A introdução nos contos de Pirandello servem como isco: aparentemente falam de uma coisa que distrai o leitor, para em seguida o parágrafo seguinte já falar de outra história (tudo é aparência).
"Contos Escolhidos"
Editorial Verbo, 1972

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Três Contos


Escrever sobre Máximo Gorki é escrever sobre a sociedade russa; ler Máximo Gorki é saber a cultura de um povo magnífico. Nestes "Três Contos" deparamo-nos com temas muito particulares da literatura russa: a condição miserável dos operários - é um tema transversal à literatura russa e não só à literatura soviética -, onde a dureza do quotidiano marca profundamente o carácter das pessoas; as relações familiares, nomeadamente o respeito pelos mais velhos, o sacrifício praticado por estes para que aqueles não sintam a fome de todos os dias; o onírico eslavo que tem como morada as tundras e as planícies vastas do frio.

Máximo Gorki é um dos expoentes maiores da literatura comprometida, durante muito tempo o escritor "oficial" da revolução, o escritor que imortalizou Lénine e que com este trocou uma correspondência sincera e riquíssima. Naturalmente que a sua obra de maior fama é "A Mãe", romance ideológico, mas também de amor e dedicação, não mãe-filho e vice-versa, como filho-humanidade.

Embora seja um autor imediatamente conotado com a revolução e com a luta dos oprimidos, Máximo Gorki acaba por ter uma obra diversa e multifacetada, através de páginas de magnífica beleza e poesia, páginas que servem perfeitamente para caracterizar um povo tão heterogéneo. Nesta pequena obra, o autor russo escreve de uma forma avassaladora sobre as agruras de um avô e de um neto, miseráveis na condição de seres humanos, pedintes de cidade em cidade, esfomeados e desesperados num país frio e infinito. O avô tudo fará para que o neto não deixe de comer e que jamais sinta no estômago a fome que ele já testemunhou. Para que a miséria seja mitigada, por vezes, é necessário recorrer a expedientes menos próprios, consequência imediata da deplorabilidade da condição humana. É precisamente através de um expediente nada honroso que a tragédia afasta os dois, o conflito é dramático, o final inesperado. O amor jamais os separou e aquilo que está reservado a ambos é prova disso.

Por outro lado, temos uma fada que quer conhecer os homens e o mundo destes, pese embora os avisos da mãe ainda soem nos seus ouvidos. A perfídia e maldade derrotam a ingenuidade e a pureza magistral do coração da fada, esta sofre porque anseia conhecer o mundo e a vida para lá da floresta cerrada. Neste caso, temos um pastor que alicia a fada com canções cantadas por uma maravilhosa voz, mas no fundo, não passa de beleza dissimulada para capturar a verdadeira, aquela que a só a pureza pode ter.

Finalmente, o último conto deste pequeno livro, aborda a vida nas salinas, o trabalho e as relações tensas entre quem está dependente daquele trabalho para sobreviver e os que acabam de chegar. A relação de ameaça entre quem está empregado e quem procura desesperadamente agarrar-se a um trabalho desumano, um tema que podemos considerar actual e que seria precisamente algo que Gorki criticaria nos nossos dias. O espírito que perpassa em todo este conto é uma marca enraízada na cultura russa: violenta e sarcástica, mas também humana e solidária.
"Três Contos"
Editorial Inova, 1972

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A História me Absolverá


Há livros que falam da sinceridade e outros preferem falar com sinceridade. No caso do mítico livro de Fidel Castro "A História me Absolverá", pertence, sem dúvida alguma, ao segundo grupo mencionado.

Nem todos as obras que partem de um eu reflectem exactamente a pessoa mais isolada da gramática, alguns são efabulados, outros serão exagerados, outros omissos, alguns negativos, etc. Perante as páginas deste testemunho histórico somos confrontados com uma honestidade que constrange o leitor porque é apanhado de surpresa, raras vezes encontramos sinceridade numa obra que tem como figura central uma pessoa de poder ou de proto-poder, na medida em que é preferível adornar as afirmações pensando já no futuro cargo.

Como já tinha visto no "Biografia a Duas Vozes" de Ignacio Ramognet (ed. Campo das Letras) e no filme "El Comandante" de Oliver Stone, Fidel Castro jamais recusa responder às perguntas feitas, assim como não nega o bem e o mal praticados. Acima de tudo, Fidel Castro assume os erros que cometeu, assume a responsabilidade de decisões polémicas, partilha a glória e as conquistas do povo cubano.

Neste livro, Fidel Castro defende-se perante os tribunais de Fulgêncio Batista (por isso aconselhável a pessoas do Direito e da Lei), após ter sido capturado em acções de guerrilha e tentativas de depor o ditador Fulgêncio. Em certos momentos, a defesa de Fidel é inexorável e sublime, abraça o povo e os ideiais socialistas, renega a influência norte-americana e entrelinhas, deixa a sugestão da revolução vitoriosa de 1959. Este livro tornou-se o manifesto da reistência, fruto das denúncias e ataques realizados por Fidel à venalidade do regime de Fulgêncio Batista. Ao longo da auto-defesa, Castro enumera ilegalidades, corrupções, violações, abusos de poder. Revela números e casos de corrupção praticados pelo ditador e pelos seus esbirros.

Quer se goste ou se odeie Fidel Castro, uma certeza podemos ter: a sua figura carismática é incontornável e com certeza ocupará para sempre um lugar na História mundial.


"A História me Absolverá"

Editorial Presença, 1970

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O Último dia de um Condenado


Este romance de natureza epistolográfica retrata a angústia de um condenado à morte, apodrecendo no chamado corredor da morte. A personagem principal (suposto autor das cartas que mais viriam parar às mãos de Victor Hugo) é um homicida condenado à pena capital que vai descrevendo o seu quotidiano e a forma vã como ainda aguarda um indulto.
O condenado vai sendo transferido de celas e, à medida que a execução se aproxima, estas vão-se tornando cada vez mais desconfortáveis e pequenas. O terror mental começa a surtir efeito porque ele já não domina a razão e entra em pânico com o aproximar do dia. Os seus pensamentos são dirigidos à sua pequena filha, sente misericórdia por ela, saudades, mas teme igualmente que no futuro tenha vergonha por ter o nome do pai, um nome de assassino.
A introdução de outras personagens serve para aumentar o conflito, nomeadamente a visita do padre, as conversas com outros prisioneiros, verdadeiros criminosos sem escrúpulos, homens que retiram vidas apenas porque não sabem fazer outra coisa. As visitas de carcereiros ou do chefe da prisão estimulam o pânico, na medida em que a vida não era valorizada e o condenado que escreve será o próximo a perder a cabeça na praça da vila, rodeado por populares que levam os filhos em passeio, afinal será um dia de festa.
Antes de morrer ouvirá uma jovem rapariga cantar uma música sinistra, ao longo de vários dias, uma bela voz com palavras tão amargas. Tentará igualmente, através de um estratagema engenhoso, ludibriar um carcereiro, levando-o a aceitar trocar de roupas. Por momentos quase conseguiu.
Victor Hugo escreveu esta obra para que pudesse ser um manifesto contra a pena de morte, uma voz praticamente isolada na Europa, tendo em conta que o Humanismo não seria prática corrente.

"O Último Dia de um Condenado"
Prefácio, 2002

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Audiência, Vernissage e Petição


As três peças de teatro reunidas neste livro abalam-me por características importantíssimas no teatro: a tensão, a confusão psicológica que conduz ao absurdo, a manipulação mental com o propósito de conquista.
O ambiente etílico da primeira peça introduz-nos imediatamente no centro do conflito, um escritório que tresanda a cerveja e o cervejeiro que não pára de beber. Vanek, o empregado que vai falar com o responsável, é constantemente convidado a beber, afinal de contas está numa fábrica de cerveja. O empregado prefere não beber e por isso a lucidez mantém-se no seu espírito.
Uma das técnicas utilizadas por Václav Havel é a repetição, as personagens são levadas a repetir frases, por vezes até à exaustão. Será para enfatizar uma ideia? Penso que será para o espectador se centrar no perfil psicológico da personagem, quer para compreender a sua fraqueza ou objectivos obscuros, quer absurdizar a acção. De facto, o dramaturgo checo domina o ritmo das palavras e o seu uso, as repetições surgem nos momentos exactos e às tantas o próprio leitor dá por si a cantar interiormente as falas das personagens.
Para atingir a intensidade que explode nos palcos, Václav Havel opta por frases curtas e linguagem vulgar, sem que isso destrua a beleza dos seus textos, para intensificar a angústia de determinada personagem, ou por outro lado, para destacar o absurdo de tal figura. A literatura de leste desconstrói realidades adquiridas e caricaturiza aquilo que é o poder instalado, atingindo por vezes instantes de sátira à grotesca existência dos homens de estado, mas também daqueles que os temem. Exemplo disso é a peça "Petição": dois intelectuais discutem sobre companheiros presos e perseguidos, discutem a possibilidade da criação de uma petição e posterior publicação no ocidente. Na verdade, um procura que seja o outro a assinar, enquanto que este já tem o documento preparado. Encontramos aqui um jogo extraordinário de pressões e medos, onde ninguém quer entregar o coração nem perdê-lo por confiar em demasia.
Em quem confiar nas peças de Václav Havel?


"Audiência, Vernissage e Petição"
Relógio D'Água Editores, 1990

A Traição do Padre Martinho


Bernardo Santareno encarna na perfeição o espírito do autor comprometido com o seu tempo, com a sociedade que o representava. Sem dúvida alguma um dos dramaturgos mais importantes da Literatura Portuguesa do século XX, quer pela pertinência das suas peças como pela denúncia que as suas personagens espalhavam.
"A Traição do Padre Martinho" coloca em cena um conflito de classes entre o povo e o poder económico, representado pelo lavrador e o engenheiro, proprietário da única fábrica existente no Cortiçal. O padre Martinho, cristão convicto, procura ajudar os paroquianos naquilo que puder, sobretudo nas questões profissionais. Essencialmente crê como sua obrigação impedir que as pessoas da aldeia sejam exploradas e por isso ajuda-as a lutar pelos seus direitos, facto que conduz a algumas greves e paralisações que muito desagrada o engenheiro.
Se por um lado temos um padre que luta pelo povo, por outro temos um vigário que luta pelos poderosos, uma vez que são estes que reabilitam as igrejas, mesmo que muitas vezes não as frequentem. Na verdade, o padre Martinho assume-se um quase marxista-cristão, categoria que não é tão absurda, se tomarmos em linha de conta o cruzamento de ideias das duas correntes e a forma como ambas podem coexistir.
No entanto, o povo está sempre sozinho e o poder sempre acompanhado por outro poder. Quando a situação se torna demasiado incómoda, o vigário, secundado pelo engenheiro e pelo lavrador, recorre ao bispo para transferir o padre Martinho para muito longe. A situação torna-se tensa, o poder não recua, as ordens estão dadas. O povo não abandona o padre e este fica refém na casa onde vivia, a população não permite que o padre Martinho seja expulso e às tantas, o conflito passa a ser entre povo e poder, sendo que o próprio padre já não é ouvido pelas pessoas.
A tragédia está iminente e de facto acaba por acontecer no desvario do poder em enviar para a aldeia as forças da ordem para suster o povo.
Bernardo Santareno recorre a algumas técnicas eficazes, nomeadamente o uso de personagens que são porta-estandartes neutros, como também a multiplicação física do padre Martinho, quando o conflito interior atinge o ponto máximo. Outro aspecto importante é a presença do narrador, figura imparcial que torna mais verdadeira a acção.

"A Traição do Padre Martinho"
Galeria Panorama, S/D

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Romance Teatral


Um dos atributos habitualmente reconhecidos na literatura russa é a análise psicológica e uma certa ambiência psíquica que afasta os russos dos demais europeus. Na obra "Romance Teatral", de Mikhail Bulgakov, a dimensão psicológica é intensa pela incerteza e pela teia labiríntica em torno de Serguei Leontievich, personagem principal candidata a dramaturgo.
De certa forma, podemos ver neste livro uma matriz kafkiana, uma vez que Serguei é conduzido por dezenas de escritórios e outros tantos responsáveis ou influentes pessoas do teatro. Na verdade, o caminho para ver uma peça sua representada é um calvário agónico, sobretudo depois do processo para alguém ter reconhecido o seu valor ter sido igualmente demorado. Um sem fim de portas abertas/fechadas e entrevistas deixam Serguei numa confusão que praticamente o deixa na prateleira dos desistentes.
O absurdo (mais uma vez a presença curiosa de Kafka) da situação é inverosímil, pois os actores, secretários, encenadores, amigos espectadores, diletantes decadentes do teatro russo, vêem-se no papel de editores, dada a natureza impulsiva para criticar e emendar o texto que apenas ao autor pertenceria. Ainda mais absurdo se torna quando Serguei Leontievich escreve uma peça para actores jovens, aquilo que podemos considerar jovens adultos, e no teatro apresentam-se os actores veteranos, os fundadores do Teatro Central, como os actores ideais para tal peça. Ora, a questão torna-se ainda mais absurda quando estes actores teriam perto de cem anos, sendo que alguns deles teriam trabalhado com actores do princípio do século XIX!
Nesta obra de Mikhail Bulgakov encontro uma certa crítica ao teatro russo e a todos os grupos que influenciam os seus movimentos, mas também a repúdia ao regime estalinista, o qual proibiu Bulgakov de escrever durante algum tempo.

"Romance Teatral"
Parceria António Maria Pereira, 1973

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Fernão de Magalhães, O Homem e o seu Feito


A escolha de livros e a relação que temos com os escritores pode ser uma forma de circum-navegar o mundo, atravessamos o tempo e toda a geografia é simbólica quando temos na mão a cultura japonesa ou os costumes eslavos. Circum-Navegar.
O livro "Magalhães - O Homem e o seu Feito" concentram duas personagens cativantes da História Universal. O autor, Stefan Zweig, foi um humanista à maneira de Erasmo de Roterdão ou Damião de Góis. Erasmo foi perseguido pelo poder e por uma sociedade obscura; Damião de Góis foi acossado (e talvez morto) pela Inquisição; Stefan Zweig foi feito personna non grata pelos nazis, a sua ascendência judaica era proibitiva para a nova ordem mundial. A outra grande personalidade desta obra é Fernão de Magalhães, o qual sempre acreditou numa certa esfericidade da Terra, facto que o poderia ter levado à fogueira.
As obras deste escritor austríaco estão marcadas pelo profundo humanismo com que insufla as suas narrações, mas também pela paixão da investigação. Se é possível notar uma certa parcialidade motivada pela admiração, não é menos verdade que Stefan Zweig não sacrifica a verdade ao seu gosto pessoal. Narra com paixão, mas com dados históricos.
Em "Magalhães" encontramos um homem obstinado em circum-navegar o planeta, um homem intransigente que não se verga perante afrontas e tentativas de traição, ao mesmo tempo, não se coloca acima do feito, sabendo que as descobertas da sua missão revolucionariam o mundo - ainda por cima controlado pelo Papa -, não deixou de ser um homem discreto e comedido.
Por vezes o estilo de Zweig pode parecer pouco histórico, uma vez que tende a poetizar os factos e o seu pensamento é visível em cada linha. Para além de historiador, é igualmente um homem preocupado com a Humanidade, por isso vê a História como um campo que pode aludir às "pequenas personagens" dos grandes feitos. Não é o caso, claro está, Fernão de Magalhães, ao serviço da coroa espanhola, roubou ao planeta um dos seus mistérios e descobriu o estreito que permitiria a passagem do Atlântico para o Pacífico.
Curiosamente, este estreito pouco foi usado depois da descoberta de Magalhães, mãos pouco habilidosas conduziam os navios contra os rochedos e a tripulação à perdição. Mas o mundo já era outro e nenhuma mesquinhez conseguiu roubar a glória eterna ao navegador português.


"Fernão de Magalhães - O Homem e o Seu Feito"
Assírio & Alvim, 2007

O Presidente


Um texto curioso logo pelo título: "O Presidente". Na verdade, ao longo do texto, Thomas Bernhard coloca no centro da acção e como grande impulsionadora das vidas alheias, a mulher do presidente. É esta personagem que disserta sobre os "hipotéticos" problemas da democracia ditatorial conduzida pelo seu marido.
A mulher do presidente é uma personagem patética e ao mesmo tempo profundamente melancólica, fala constantemente para uma alcofa vazia - o cão fora morto num atentado -, nos seus monólogos as outras personagens são convidadas a falar, mas sem espaço para o fazerem, uma vez que a presidenta fala em torrentes magníficas de disparates, resignam-se a um espaço interior que as desumaniza lentamente. É perceptível uma cisão entre classes sociais, a mulher do presidente e a criada (Senhora Feliz) representam os pólos opostos: a primeira decide o que a criada veste, o que diz, decide ainda sobre a forma como a criada deve viver; por outro lado, a criada limita-se a ser gente porque ainda veste as roupas que a sua patroa já não usa. É gente em último grau.
"O Presidente" é uma peça em cinco actos, dois dos quais passados em Portugal, aqueles em que o presidente se diverte a manipular a sua amante, uma actriz de segunda que apenas vive na sombra da sombra do estadista. Portugal acaba por ser retratado como um último paraíso europeu, a grande varanda para o Atlântico, os vícios e os prazeres no Casino do Estoril.
Thomas Bernhard não escolheu Portugal à toa - como podia? -, pois conheceu-o muito bem, em dois períodos distintos: revolução e pós-revolução. Assim como na sua peça o ditador cheira a ameaça de uma revolução, em Portugal uma revolução acabara de acontecer.
Não faltam adjectivos para caracterizar o espírito acintoso deste autor austríaco (nascido na Holanda), assim como a perturbação que percorre toda a sua obra. Uma peça de ritmo difícil pela pontuação, mas soberba pela descrição de uma ditadura em decadência.


"O Presidente"
Livros de Areia, 2008