segunda-feira, 31 de agosto de 2009

A Estalagem das Duas Bruxas

Infelizmente não se trata de uma aventura marítima. Felizmente "A Estalagem das Duas Bruxas" é uma aventura fantástica, das brumas costeiras e dos mitos que torturam a fragilidade humana. De certa forma, ainda que a semelhança seja remota, este conto de Joseph Conrad é um exercício proto-épico, na medida em que dois heróis (dois dos melhores marinheiros da corveta britânica), Cuba Tom e Edgar Burne, são obrigados a viajar por uma terra perigosa e potencialmente dúbia, Espanha.
Os dois marinheiros têm como missão encontrar o grupo miliciano do Gonzalez, cuja aversão aos franceses o aproxima dos ingleses e vice-versa. Aquilo que atrai os marinheiros a terra não são as vozes melífluas das sereias, senão a tal missão secreta. No entanto, os dados estão lançados e os homens separam-se, Edgar Burne segue sozinho em busca de Gonzalez e Cuba Tom regressa à corveta. A Fortuna exige que Cuba Tom caia nas mãos negras do Destino e que Edgar siga o mesmo caminho. De facto, Cuba morre e envia do mundo dos mortos um aviso ao companheiro "Abra bem os olhos!".
Edgar Burne, oficial e bom homem, começa a investigar o desaparecimento do companheiro, facto que o levará a afastar-se do grupo do Gonzalez. Com um domínio muito fraco de Espanhol, Edgar cruzar-se-á com locais hostis, antipáticos até à medula, totalmente avessos a forasteiros. Ainda assim, o nosso herói consegue obter informações sobre Cuba Tom e parte decidido para a estalagem das duas bruxas. A revelação (oráculo) foi feita por um homem embuçado, envolto num manto de suspeita e ironia. Os intentos deste homem são obscuros, mas a informação é válida.
Finalmemente o último ponto épico deste conto: tal como Perseu ou Ulisses, Edgar Burne visita as duas bruxas, ainda na incerteza da natureza diabólica das duas figuras. Será que podemos afirmar que se trata de três bruxas, tal como Perseu perante as três bruxas estigeanas? Na companhia das duas mulheres vivia uma jovem mulher que acaba por enfeitiçar Edgar Burne, uma beleza inaudita deixa o oficial rendido e de certa forma mais descansado. Beleza e maldade, tentação e perdição, características que estão intimimamente ligadas ao Mal.
Joseph Conrad acaba por escrever um conto gótico com traços épicos, pleno de elementos mitológicos e aventureiros. O herói deste conto cai na armadilha e fica preso no quarto onde Cuba Tom fora assassinado. "Abra bem os olhos!" fora o aviso do infeliz. Edgar Burne, drogado com a comida que as velhas lhe ofereceram, resiste até ao fim, não adormece e destrói o poder maligno que se alimentava naquela estalagem.
Sorte ou azar? Destino!


"A Estalagem das Duas Bruxas"
Publicações Europa-América, 2007

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O Tempo e o Quarto


Uma festa que não tem fim porque os convidados voltam atrás. Um homem vem à procura do relógio que julga ter esquecido naquela casa; uma mulher que está na rua e entra em casa porque julga estarem a falar dela; um homem que aparece e revela o nome da mulher que estava na rua. Aos poucos vamos sabendo nomes e histórias das personagens, a forma como todos se cruzam. Aos poucos somos convidados a entrar na obra e na festa, que entretanto já se transformou num desenrolar de memórias, histórias de amor amargas e não correspondidas.
Ao que tudo indica, Julius e Olaf são os anfitriões da festa e em última análise, da própria casa. O primeiro está habituado a falar e a questionar a vida e os outros, enquanto que Olaf é um homem habitado pelo silêncio, o seu e o dos outros, prefere não ouvi-los e foge quando alguém lhe dirige a palavra.
São os leitores-espectadores, os responsáveis por construir um puzzle de emoções e de indícios que constituem as personagens, uma certa confusão abunda naquela casa e num dado passado em que as personagens se cruzaram.
Para além da casa, apenas a rua de que falam, e o resto do cenário é sóbrio e reduzido. O cenário não é importante, mas sim o conflito que se espalha e se insinua com o tempo.
Numa segunda parte da peça ficamos a saber que algo estava invertido inicialmente, as personagens afinal têm outras histórias, a casa não é de Julius e de Olaf, a mulher (Marie Steuber) que estava na rua afinal não é uma forasteira.
O tempo é uma presença muito relevante nesta peça de Botho Srauss, não-só pela ponte criada entre o presente e o passado, como depois entre o passado e o presente (novamente a inversão). A única coisa que parece ser negada é o futuro.


"O Tempo e o Quarto"
Relógio D'Água Editores, 1993

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

O homem ou é tonto ou é mulher


Um homem que tem pedras dentro dos bolsos e que quer trocá-las por uma máquina de pensar. O mesmo homem tem dois livros de um filósofo que pensam por ele, mas o problema está nos pensamentos serem sempre os mesmos, um livro não pode mudar.
O homem ou é tonto ou é mulher acaba por ser um excelente exercício literário, uma espécie de roteiro da vida de um homem que disserta sobre as suas experiências. Os projectos e ambições que ele tem são magníficos, porém, o desejo estraga tudo e o desejo é o sexo. Em última análise, o sexo estraga tudo. Este pequeno livro é uma súmula de humor negro, imagens cruéis narradas com uma dose refinada de ironia que acabamos por sorrir no fim da frase, "Um dia decidi declarar finalmente o meu amor e quando cheguei à porta da rapariga ela estava mesmo a sair para o seu casamento.
É um caso típico de má sorte."
Podemos ler esta obra como uma biografia não-autorizada de alguém que não existe, uma personagem com substância, mas que ainda não existia como existe hoje. O tempo transforma as personagens e se o homem tinha 30 anos no livro, hoje terá mais. As personagens envelhecem como as pessoas, mas este homem encerra em si as características de um excêntrico: pensamentos peculiares, acções dementes, criações.
Este livro foi adaptado para teatro pelos Artistas Unidos. Compreende-se porquê, uma vez que o ritmo dinâmico permite agilizar o actor perante o espectador, quer através dos aforismos acutilantes do homem, quer através das próprias vidas que a personagem experienciou. Embora não tenha indicações cénicas ou de posição do actor (está escrita em prosa), será fácil imaginar a peça dentro do livro: as acções interiores e exteriores sugerem um espaço imaginado por cada um.
A fechar o livro um ponto que fala sobre os artistas, criando de certa forma um ponto de ruptura com os pontos anteriores. A personagem assume-se como artista (o próprio Gonçalo M. Tavares?) e expoe as angústias e os medos, o caminho inevitável para um artista: a solidão.
Uma pequena obra demasiado curiosa para não ser lida, assim como o autor, o mais interessante escritor português da actualidade e sem dúvida alguma, o mais coeso no universo das suas obras.


"O Homem ou é Tonto ou é Mulher"
Campo das Letras, 2002

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O Engenho


Uma grandiosa ode à liberdade, um poema cuspindo contra os ditadores e a opressão, um lamento pela prisões em cada rua.
Nesta obra escrita em prosa e poesia - mas considerado poema pelo autor -, Reinaldo Arenas, um dos intelectuais dissidentes mais conhecidos de Cuba, explora o lado obscuro do regime cubano, através da descrição do "recrutamento" de jovens para o trabalho nas plantações de açúcar. Na verdade, este é um trabalho escravo, onde as horas diárias de produção chegam às 16. Extenuados, os jovens apenas podem aspirar à morte por cansaço ou ao apagamento da mente, deixar de imaginar o futuro, embrutecendo-se entre canas e açúcar que adocicarão os lábios dos senhores e reis do mundo.
Este não é apenas um poema contra a escravatura, acima de tudo, é uma obra sobre a história da escravatura, dos africanos que foram levados para Cuba e aí pereceram sob o peso do chicote e das horas perdidas a carregar pedras. É um poema que aproxima a escravatura actual da antiga, daquela que sustentou os Descobrimentos e tornou as sociedades europeias ainda mais civilizadas, onde os jovens - dissidentes, pequenos criminosos, gays, etc. - eram conduzidos àqueles campos de reeducação. Pretendia-se transformá-los em revolucionários e protectores do regime; acabaram escravos, acabaram mortos, acabaram exilados.
Reinaldo Arenas enfatiza a falta de esperança para os jovens - porque são o futuro do país -, aquele caminho que subitamente é cortado e de repente, apenas um abismo aos seus pés: pátria ou morte. Apenas o mar é imagem de liberdade, tem a imensidão que caracteriza o infinito, é a fronteira para os EUA.
Embora adepto da Revolução (no seu princípio), rapidamente fica desiludido com as consequências: perseguido por ser homossexual, os seus textos são vigiados, a sua liberdade termina numa prisão. Porém, depois da agonia da desesperança e da dor, da humilhação, Reinaldo Arenas consegue embarcar para Miami, onde morre mais tarde num apartamento, assistido pelo seu companheiro.
Mas como o próprio diz em O Engenho, a propósito da liberdade:

procuramos-te ainda
procuramos-te sempre.


"O Engenho"
Antígona - Editores Refractários, 2006

"Antes que Anoiteça"
Edições Asa, 2ª edição, 2001

"Antes que Anoiteça"
Filme sobre a vida de Reinaldo Arenas
Realizado por Julian Schnabel, 2001