quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Autobiografia Prematura


Uma autobiografia será sempre prematura, assim como as memórias, se for escrita muito antes da morte. Será inquestionavelmente um conjunto de revelações incompleto, tendo em conta que a história mais interessante poderá ser a última.
Mas no caso de Ievguéni Ievtuchenko (1933-), a sua Autobiografia Prematura faz algum sentido se considerarmos que foi escrita num período especial da União Soviética. Embora não tenha conseguido descobrir o ano exacto em que foi escrita a obra (presumo que entre 61-62), foi seguramente no período de destalinização (Estaline tinha morrido em 1953) e no momento de maior abertura, uma vez que Kruschev teve como objectivo denunciar ao máximo as atrocidades do seu predecessor. Assim, Ievtuchenko, aproveita esta porta aberta para escrever livremente, não pensando num líder que censurasse a sua obra, nem ao mesmo tempo, temer um exílio na Sibéria (sua terra natal). Por outro lado, não sabia que líder se seguiria, portanto aproveitou e fê-lo bem.
Em "Autobiografia Prematura" o escritor soviético expõe a sua vida sem qualquer tipo de pretensiosismo, nomeadamente no que diz respeito à sua vida literária. Fala com franqueza quando assume as recusas dos jornais e editoras, nem sempre por falta de talento, mas porque razões políticas impediam tal poema de ser publicado. E um dia consegue publicar poemas em jornais desportivos – o que lhe confere desde logo inimizades vindas de colegas de profissão -, poemas de juventude, claro, mas marcados por uma certa irreverência, uma vez que não referiam o nome de Estaline. Na verdade, alguns deles tiveram de ser “emendados” para puderem ser publicados. E no fim, lá aparecia o nome do ditador soviético. Curiosamente, o livro preferido de Ievtuchenko é Martin Eden, de Jack London, onde a personagem principal (Martin Eden) é um escritor que procura editar e não consegue. A sua luta épica dura anos, assim como a de Ievguéni Ievtuchenko.
Mas Ievtuchenko não fala só de literatura, aborda ainda aspectos sociais e políticos do seu país, explica alguns dos trabalhos que foi tendo e sobretudo, da sua outra paixão: o futebol. Tal como Albert Camus, Ievtuchenko podia ter sido guarda-redes (parece que seria dos bons), porém, um dia chega aos treinos completamente bêbedo e o treinador expulsa-o. Estava terminada a sua carreira no futebol, apenas porque agora já publicava poemas em jornais e isso “obrigava-o” a ser boémio.Um dos episódios mais marcantes deste livro é a descrição do funeral de Estaline. Como é natural, milhares de pessoas amontoaram-se para ver o féretro onde seguia o morto, alguns por simpatia outros para terem a certeza de que realmente Estaline tinha morrido. No entanto, durante o cortejo, várias foram as pessoas que morreram, sufocadas e espezinhadas, empurradas contra paredes e postes. Ievtuchenko ajudou a multidão e conseguiu atenuar a tragédia, mas não conseguiu ver Estaline. Ou conseguiu? “- Viste o Estaline? – Perguntou-me a minha mãe. / - Vi – Respondi num tom que não encorajava a continuação da conversa, enquanto erguia o meu copo e tocava no do rapaz. / Afinal , não chegara a mentir à minha mãe. Estaline era, realmente, aquele desastroso espectáculo que presenciara.” (p.130).


"Autobiografia Prematura"
Publicações Dom Quixote, 1966

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Pedro e João


Em “Pedro e João” Guy de Maupassant explora a relação tensa entre dois irmãos, sobretudo depois de um deles (João) receber de herança 20 000 Francos, provenientes da morte de um amigo dos pais. Maupassant desenvolve esta problemática de uma forma muito equilibrada, nomeadamente no ritmo de revelações e agravamento da relação, como na própria estrutura do romance, onde o tempo e espaço são desenvolvidos de maneira muito calma, pese embora o destino que paira sobre cada um.
Guy de Maupassant, discípulo oficial de Gustave Flaubert, oscila entre o Naturalismo e o Realismo, quer criticando socialmente a Paris oitocentista, como aproximando-se de análises psicológicas das personagens. A forma de o fazer é muito diversa da desenvolvida por Dostoiévski, uma vez que este era mais denso e violento nas suas construções, claro está que o facto de um ser francês e outro russo explica as diferenças entre os dois. No entanto, Maupassant opta por um caminho mais limpo, por cargas psicológicas menos exaustivas, colocando o indivíduo na sociedade e assim criticando os vícios de todos através de uma só personagem.
Neste romance de 1888, o autor coloca dois irmãos em confronto, como dois blocos distintos que rivalizam por um lugar de destaque entre a burguesia pavoneante. Pedro (médico) perde quase sempre para João (advogado), quer nas preferências dos pais, como de uma viúva que paira em busca de um futuro marido. Por isso Pedro comunga das cervejas e dos antros sebosos dos marginais que circulam pelo cais; recebe com encanto o licor de cereja que Marowsko, emigrante polaco, lhe oferece. Com todos se identifica, à excepção daqueles que lhe são próximos: despreza o irmão pela popularidade; odeia o pai pela sua capacidade inata de ser estúpido; passará a sentir-se enojado com a presença da mãe por… É necessário ler o livro para saber esta razão!
É um romance de vícios, de paixões desmedidas e dicotómicas, um romance de terra e de mar. Um romance essencial da literatura francesa do século XIX.
Para além do romance, Guy de Maupassant oferece ao leitor um ensaio curioso sobre a obra, sobre a profissão de crítico literário e suas falhas nos critérios, na forma acéfala como aqueles analisam as obras. Ao mesmo tempo, Maupassant traça de uma forma muito simples a sua poética e isso podemos encontrar nas páginas que se seguem, ou seja, neste romance e em outras obras do autor.

Pedro e João”
Editora Arcádia, 1960